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A má dívida boa

O problema da dívida não nasce com a crise. Esta apenas destapa os problemas criados antes, revela a natureza da dívida e dificulta a sua gestão, pondo a nu os ruinosos compromissos antes contraídos. Expõe de forma crua a ausência de rentabilidade nas aplicações dos créditos pré-crise.

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Não é verdade - como alguns maldosos insinuam - que não existe alternativa à política de austeridade. Ela está totalmente delineada no manifesto dos 74, tanto na versão original para adultos, como na edição abreviada para meninos cábulas estrangeiros. A primeira intitula-se elegantemente: "Preparar a reestruturação da Dívida para Crescer Sustentadamente". A segunda, mais pedagógica e directa, prevendo leitores de lento entendimento: "Reestruturar a dívida insustentável e promover o crescimento, recusando a austeridade".

 

O manifesto é ambicioso e comporta três objectivos: 1) branquear o trágico desperdício de recursos operado nos últimos 15 anos; 2) propagandear - para promover a sua próxima reedição - o fracassado modelo de desenvolvimento do passado; 3) mascarar a origem da dívida. 

 

Não há crescimento - afirmam os do manifesto - sem reestruturação da dívida; afinal a dívida é má, isto é, insustentável. Ontem, diziam os mesmos - enquanto promoviam ou propagandeavam ruinosos "investimentos" - a dívida é virtuosa e sustentável, isto é, era boa. Afinal, a dívida é boa ou é má?

 

O objectivo de limpar o passado é prioritário e condiciona os restantes objectivos. Logo na primeira página proclama-se:  "A crise internacional iniciada em 2008 levou, entre outros factores, ao crescimento sem precedentes da dívida pública. No biénio anterior, o peso da dívida em relação ao PIB subiu 0,7 pontos percentuais, mas elevou-se em 15 pontos percentuais no primeiro biénio da crise."

 

Porém, observe-se, na tabela anexa, o que verdadeiramente ocorreu com as dívidas públicas dos principais países europeus antes e após o espoletar da crise financeira. A dinâmica essencial da dívida portuguesa é criada - por opções de política económica - no período que vai do lançamento do euro até 2008. A crise financeira apenas piora as condições, antes artificialmente fáceis, de gestão daquela dívida. 

 

Entre 2000 e 2007, o rácio da dívida cresceu em Portugal 35% e desceu 4% no conjunto da União Europeia a 15 (UE15). Apenas 6 dos 15 países registaram aumento. Nenhum país do grupo teve aumento superior a Portugal; o segundo país (França) regista um crescimento que é 1/3 do nosso. No mesmo período, a dívida nominal bruta cresceu em Portugal 79,5% contra 26,3 na UE15; apenas um país, o Luxemburgo (83,8%) teve crescimento superior a Portugal.

 

No período 2007/2013 o rácio da dívida cresceu em todos os países. O rácio da dívida portuguesa subiu 89,2% e a média da UE cresce 52,8%. O rácio de Portugal foi apenas o 5.º que mais cresceu, atrás da Irlanda (392,1%), Luxemburgo (264,5%), Espanha (159,9%) e Reino Unido (109%). Tomando a evolução da dívida nominal bruta, encontramos idêntico padrão: o que caracteriza e distingue a situação portuguesa é a evolução antes da crise financeira. A dívida nominal bruta evoluiu entre 2000 e 2007 a um ritmo triplo da média. A diferença esbate-se grandemente no período após a crise.

 

A dívida nominal bruta teve entre 2000 e 2007 e entre 2007 e 2013 um crescimento aproximado, respectivamente, 79,5 e 84,7%. O período antes da crise é o decisivo, aquele onde o endividamento disparou de forma autónoma e se desperdiçaram recursos abundantes e baratos. O problema da dívida não nasce com a crise. Esta apenas destapa os problemas criados antes, revela a natureza da dívida e dificulta a sua gestão, pondo a nu os ruinosos compromissos antes contraídos. Expõe de forma crua a ausência de  rentabilidade nas aplicações dos créditos pré-crise.

 

A ingénua classificação de insustentabilidade da dívida é a suave confissão da ruinosa aplicação dos recursos obtidos a crédito. Para o não admitir os do manifesto interpõem uma conveniente crise para disfarçar os fracassos do passado.

 

Mas qual é a contrapartida para o salto da "reestruturação" da dívida? Um novo modelo de aplicação de recursos? Não. Avançam, antes, com  mais do mesmo, numa linguagem de madeira, repetitiva de velhas fórmulas castradoras: "Especializações competitivas geradas pela qualidade, pela inovação, pela alta produtividade dos factores de produção envolvidos e pela sagaz capacidade de penetração comercial…".  Estes "slogans" que povoaram os programas políticos dos últimos 20 anos vêm agora condimentar o apelo à reestruturação para que não tenhamos dúvidas do que nos propõem fazer com o dinheiro que conseguissem arrancar aos credores.

 

Trata-se de um contributo para a discussão das modalidades da regeneração da economia portuguesa? Não. É a mera reafirmação do modelo responsável pelo impasse do crescimento português, agora impossível de reeditar, por feliz intolerância dos nossos parceiros europeus.

 

Economista e professor do ISEG

 

 

 

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