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Virgolino Faneca e o “remake” do clássico “Sansão e Dalila”

Em espístola ao amigo Desidério, Virgolino Faneca fala da sua última incursão pelo universo do cinema e do seu pasmo pelo notável “remake” do clássico “Sansão e Dalila”, em que Dalila é um homem, Wolfgang S., e o protagonista de “Sanção”, António C., tem um cabelo tão curto que é impossível cortá-lo.

08 de Julho de 2016 às 17:00
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Caro Desidério

Como emérito cinéfilo que és, achei que era minha obrigação dar-te conta da minha última incursão pelo universo do cinema e do meu pasmo pelo notável "remake" do clássico "Sansão e Dalila", o qual se apresenta como um verdadeiro corte epistemológico nesta arte, rasgando uma auto-estrada do pensamento rizomático que conduz aos confins do telúrico e também tem a capacidade de desassossegar os cânones da estrutura narrativa dominante.

Todos nós conhecemos o épico "Sansão e Dalila", de Cecil B. DeMille, que fez furor em 1949 e no qual Dalila deu mau nome às cabeleireiras, na medida em cortou o cabelo ao dito, também seu cônjuge, sabendo que era este que lhe transmitia uma força descomunal, colocando-o assim à mercê dos seus inimigos.

Aquilo acabou tudo num arraial de tareia no decurso do qual o Sansão e a Dalila acabaram por morrer, o que, não sendo bonito, passava por ser uma lição de moral e de ética.

Este "Sanção e Dalila", caro Desidério, é diferente, muito embora também pisque o olho à temática da punição. Ao longo de todo o filme é patente a influência da obra de Akira Kurosawa, mas também a de Federico Fellini, sendo através deste caldo que o espectador assiste, com puro deleite, a uma obra poderosa. Aliás, o realizador, Jean-Claude J., começa por surpreender na atribuição de papéis. Dalila é um homem, Wolfgang S., e o protagonista de Sanção, António C., tem um cabelo tão curto que é impossível cortá-lo.

Esta inverosimilhança, no que toca a Dalila/Wolfgang S., não se esgota na questão do género e no sobressalto que a mesma provoca.

É, acima de tudo, uma provocação que força a reflexão. Pela câmara de Jean-Claude J., que certamente viu inúmeras vezes o "Querelle", de Rainer Werner Fassbinder, Wolfgang S. é uma personagem atormentada pelo seu desejo em ser Dalila e objecto de desejo. Perante a indiferença de António C., Wolfgang S. transforma esta rejeição no motor da sua existência e procura subjugar Sanção/António C. à sua vontade. Esta, digamos, é a peculiar forma que encontra para sentir e dar prazer. Em cada ameaça de Wolfgang S. há um velado desejo, em cada crítica demolidora, um indizível amo-te.

Citando Martin Heidegger, "o homem age como se fosse o senhor e mestre da linguagem, quando na verdade a linguagem permanece mestra do homem".

Sanção/António C. mantém-se impávido. Só retribui o afecto de Wolfgang S. se este o deixar crescer o cabelo sem recriminações, pretensão que remete para o domínio do fálico. Um pedido que Dalila/Wolfgang S. rejeita porque tem um trauma de infância. Aos 13 anos, na penumbra, enfeitiçou-se pelos longos cabelos de uma mulher e ficou destroçado quando, ao tentar osculá-la nos lábios, percebeu que era uma esfregona.

António C. insiste em ter uma farta cabeleira e vai distribuindo prebendas pelo povo do seu reino, aumentando a angústia do asceta Wolfgang S.

A trama tem o seu epílogo quando ambos recorrem a Kafka, personagem que toma a forma de Manneken Pis, para mediar o conflito. O penúltimo plano mostra António C. e Wolfgang S. à espera de um veredicto, a jogarem mikado, já com longas barbas brancas, o que insinua que o tempo de espera se eternizou. Depois, no plano final, a câmara de Jean-Claude J. parte de Kafka/Manneken Pis e, após um longo "travelling", debruça-se sobre a janela, captando uma multidão a destruir, hélas, a estátua de Manneken Pis.

E é com esta maravilhosa ambivalência que termina o filme, que segundo os críticos do Expresso merece mais estrelas do que aquelas que o céu tem.

Um abraço em contrapicado deste teu amigo,

Virgolino Faneca

Quem é Virgolino FanecaVirgolino Faneca é filho de peixeiro (Faneca é alcunha e não apelido) e de uma mulher apaixonada pelos segredos da semiótica textual. Tem 48 anos e é licenciado em Filologia pela Universidade de Paris, pequena localidade no Texas, onde Wim Wenders filmou. É um "vasco pulidiano" assumido e baseia as suas análises no azedo sofisma: se é bom, não existe ou nunca deveria ter existido. Dele disse, embora sem o ler, Pacheco Pereira: "É dotado de um pensamento estruturante e uma só opinião sua vale mais do que a obra completa de Nuno Rogeiro". É presença constante nos "Prós e Contras" da RTP1. Fica na última fila para lhe ser mais fácil ir à rua fumar e meditar. Sobre o quê? Boa pergunta, a que nem o próprio sabe responder. Só sabe que os seus escritos vão mudar a política em Portugal. Provavelmente para o rés-do-chão esquerdo, onde vive a menina Clotilde, a sua grande paixão. O seu propósito é informar epistolarmente familiares, amigos, emigrantes, imigrantes, desconhecidos e extraterrestres, do que se passa em Portugal e no mundo. Coisa pouca, portanto.


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