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Eduardo Catroga: A geringonça está a funcionar, mas na direcção estratégica errada

Tem uma carreira profissional de 50 anos e é presidente do Conselho Geral e de Supervisão da EDP. Eduardo Catroga fala de vida e de política.

Bruno Simão
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Eduardo Catroga tem uma longa carreira profissional de 50 anos que promete prolongar por mais dez. Foi várias vezes convidado para integrar governos, mas só aceitou o desafio uma vez, tendo sido ministro das Finanças de Aníbal Cavaco Silva entre 1993 e 1995. É presidente do Conselho Geral e de Supervisão da EDP e diz que o relacionamento com os chineses, os maiores accionistas da empresa, tem sido "muito fácil". Pelo caminho, conta a história da ruptura que José Sócrates quis fazer e explica porque disse a palavra pentelhos numa entrevista televisiva.



Como foi a sua infância?

Nasci numa aldeia, em São Miguel de Rio Torto, concelho de Abrantes. A minha infância foi extraordinariamente feliz. Frequentei a escola primária numa aldeia que na altura tinha 2.500 habitantes, hoje tem metade. E, como todos os rapazes da minha idade, gostava de jogar futebol no Verão e na Primavera, noutros períodos jogávamos ao hóquei em campo no tempo do hóquei em patins. E havia o jogo da pata, vários jogos…

 

Interessava-se pelos estudos?

Sempre fui bom aluno. Fui logo para a segunda classe porque a minha mãe era regente escolar, professora primária, e eu ia frequentemente com ela para a escola e assistia às aulas. Tanto ouvi que aprendi. E, dos seis para os sete anos, quando chegou a altura de ir para a escola – entretanto, a minha mãe tinha deixado de dar aulas –, tive como professora a dona Maria Virgínia que, felizmente, ainda hoje é viva. Ela verificou que eu já não tinha nada a aprender na primeira classe, fez um requerimento à direcção-geral de Santarém e propôs que eu fosse para a segunda classe. Quando fiz o exame da quarta classe na sede do concelho, em Abrantes, fui o único a ser aprovado com distinção. No ano em que eu iria para o secundário, nasceu a Escola Industrial e Comercial de Abrantes, em 1952. E, pela primeira vez, uma dúzia de mancebos da aldeia foi estudar. Normalmente, ia um, dois, em função das posses dos pais, para colégios privados fora da zona. O meu pai tinha sido operário da indústria da cortiça, depois passou à fase de negociante ainda com vinte e tal anos e, pouco a pouco, foi-se transformando em empresário. E, quando eu cheguei aos 10, 11 anos, ele já tinha posses para me pôr a estudar num colégio privado. Simplesmente, eu fiz finca-pé porque queria ir com os meus amigos para a escola industrial. O meu pai era um "self-made man", o meu exemplo para toda a vida…

 

Exemplo em que sentido?

Em termos de trabalho, de bom senso, em termos de experiência, de carácter, em termos do modo de estar. E o meu pai, que viu com certeza que eu era um jovem com potencial, quando eu lhe disse que queria ir para a Escola Industrial e Comercial de Abrantes, não respondeu logo que sim nem que não, a resposta dele foi: vou ver para o que é que isso dá. Passada uma semana, deu luz verde para me inscrever porque se informou e verificou que, indo por aquela escola, eu poderia passar depois ao Instituto Comercial e, depois, ao Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras que, na altura, tinha duas licenciaturas: o curso superior de Economia e o de Finanças. E recordo-me de ele ter dito: podes ir que isso dá para o curso do Salazar. Porque, na época, as pessoas estavam convencidas de que Oliveira Salazar era formado em Finanças, quando ele era professor de Finanças na Universidade de Coimbra, sendo a sua formação na área jurídica. Os cursos de Direito na época tinham a disciplina de Finanças Públicas.

 

cotacao Atingi o topo da carreira no Grupo CUF com 31 anos. Recordo-me de que o meu salário era 10 a 20 vezes superior à média dos meus colegas, ganhava 100 contos/mês.

Em Julho de 1993, recebo um cartão de Cavaco Silva: economista não faz férias em Dezembro e muito menos em sítios tropicais. 

 O seu pai queria que fosse para Finanças. E você queria ir?

Eu não tinha ideia do que pretendia ser, simplesmente tinha o fito de tirar um curso superior e o curso superior de Finanças, na altura, também me soou bem. O meu objectivo era chegar à universidade e fui o primeiro aluno, dos que entraram na Escola Industrial e Comercial de Abrantes, a consegui-lo.

 

Um curso superior porquê?

Era uma ambição. A família sentia que eu tinha potencial, eu também sentia e queria ter um curso superior. E realmente aconteceu que a linha definida pelo meu pai correspondeu a essa minha vocação.

 

E veio de Abrantes para Lisboa.

Dos 14 para os 15 anos, vim para Lisboa porque a chamada secção preparatória ao Instituto Comercial não existia em Abrantes, só existia em algumas escolas, entre as quais a Veiga Beirão, no Largo do Carmo. Inscrevi-me aí e o meu pai pôs-me à guarida de umas pessoas da terra que viviam em Lisboa e me receberam, dando-me quarto, comida e roupa lavada.

 

Habituou-se a Lisboa?

Nos primeiros anos, foi extraordinariamente difícil. Sobretudo, no primeiro ano. Aliás, sempre que tinha oportunidade, apanhava o comboio para ir para a terra. A saudade da terra, dos pais, dos amigos, etc. Vim para Lisboa, a cidade grande, que fui descobrindo aos poucos e poucos. Os cinemas, os vários campos de futebol. Um moço da aldeia que ouvia os relatos de futebol tinha uma mitologia, o estádio da Tapadinha, o de Alvalade, o da Luz. No primeiro ano, mantive-me sob a tutela dessa família. Quando fui para o Instituto Comercial de Lisboa, dos 16 para os 17, autonomizei-me e passei eu a arrendar quartos em Lisboa. Fui descobrindo a cidade e as viagens à terra começaram a ser menos frequentes.

 

Estudava muito?

Era bastante aplicado. Não acredito nos alunos muito acima da média sem aplicação.

 

E já projectava uma carreira profissional?

Acabei o curso superior de Finanças em Junho de 1966, em plena guerra colonial, e tinha a perspectiva de ir para o serviço militar, que era três ou quatro anos. As coisas foram acontecendo muito naturalmente. Em Junho de 1966, acabei a licenciatura e concorri à Marinha porque tinha uma vida militar menos dura do que no Exército. Para surpresa minha, entrei num dia e saí no outro porque o ministro da Marinha da altura, que era o Quintanilha Mendonça Dias, resolveu começar a fazer controlo político das entradas. Embora eu nunca tenha tido uma intervenção política activa, vivi as crises académicas de 1961 e 62, tinha as minhas opiniões e assinei vários abaixo­-assinados que corriam na faculdade. O certo é que isso determinou uma informação da PIDE e eu não entrei. Eu fiquei tão aborrecido que decidi não ir para a tropa nesse ano porque se podia pedir adiamento até aos 25 anos e eu estava com 23. Um professor meu da faculdade que já faleceu, o Rodrigo Guimarães, era assessor do ministro das Finanças da época e convidou­-me para seu assistente de trabalho no Ministério. Daí eu ter começado a minha actividade profissional no Ministério das Finanças. Ou seja, em Setembro de 1966, iniciei a minha actividade profissional pós-licenciatura no campo da macroeconomia, e isso fez vincar ainda mais no meu espírito que a minha vocação estava no campo da economia prática, da gestão empresarial.

 

Tem uma espécie de condomínio familiar, onde vive toda a sua família, as suas filhas, os seus netos. Porque é que os quer todos à sua volta?

Foi fruto das circunstâncias. Eu já tinha vivido em apartamentos mas, como rural, tinha o sonho de ter uma casa. Como a vida me estava a correr bem, quando cheguei a 1987, achei que era altura de realizar esse sonho. Mas a minha mulher é muito lisboeta, nascida na freguesia de Arroios, e disse logo que não ia para fora de Lisboa. E vi um anúncio no Diário de Notícias de uma casa à venda na Lapa. Fui ver, era na rua de São Ciro, estava tudo a cair. Levei lá a minha mulher e ela disse-me: estás maluco. Desisti da ideia mas, passados seis meses, vejo o mesmo anúncio no Diário de Notícias e levei lá uma arquitecta amiga para fazer um esboço. E ela desenvolveu um pré­-projecto que dava para fazer uma casa para mim e mais duas, uma para cada uma das duas filhas, com um jardim comum. Levo lá a minha mulher, com a arquitecta, e ela rendeu-se à ideia de ter um condomínio familiar fechado, e começámos a viver assim em 1991. Foi uma questão de oportunidade. E foi neste condomínio que foram criados quatro netos, o mais velho já tem 25 anos, a mais nova tem 18.

 

Voltando à sua carreira profissional, o que sucedeu depois de não ter entrado na Marinha?

Em Março de 1967, casei. Entretanto, tinha acabado a minha formação militar no Exército, três meses mais três meses, e o meu objectivo, na altura, era arranjar um lugar na tropa onde só se trabalhasse uma parte do dia. E, nos últimos dias no quartel do Lumiar, houve um tenente que me chamou, que era o Manuel Duran Clemente, mais tarde ligado ao 25 de Abril, de quem ainda hoje sou amigo, a dizer que ia ser chefe da contabilidade da direcção de serviços de fortificações e obras militares, que precisava de um adjunto e me queria convidar para o lugar. Na altura, tinha como colega, no serviço de administração, o António Carlos de Mello Champalimaud, que veio a falecer prematuramente. Disse-lhe que precisava de um "part-time", ele pediu-me o "curriculum" e entregou-o ao pai António Champalimaud e ao tio Jorge de Mello. Então, sou chamado a entrevistas à companhia de seguros Mundial e à CUF e, porque tinha recebido o prémio Alfredo da Silva para o melhor aluno do curso, e uma dezena de outros prémios escolares atribuídos pelo Grupo CUF, sentimentalmente decidi ir para a CUF. E atribuíram-me o projecto de colaborar nas fábricas do Barreiro. Então, de manhã trabalhava no Barreiro e, à tarde, ia para a direcção do serviço de fortificações e obras militares. Aí, consolidei a ideia de que queria fazer gestão empresarial. Na CUF, tive uma ascensão meteórica. Antes do 25 de Abril, passei a director financeiro, depois a director central do planeamento e controlo e, depois, a administrador financeiro. Atingi o topo da carreira no Grupo CUF com 31 anos. Recordo-me de que o meu salário era 10 a 20 vezes superior à média dos colegas, ganhava 100 contos por mês quando veio o 25 de Abril, além do bónus anual. Depois do 25 de Abril, o Nobre da Costa e o Mário Soares resolvem fusionar a CUF, com outras duas empresas que operavam na área dos adubos, criando a Quimigal. No primeiro conselho de gerência da Quimigal fui convidado para vice-presidente, o presidente tinha mais 20 ou 30 anos do que eu, e eu passei a ser o "executive vice­-president". Ele funcionava mais como "chairman" e eu é que tinha o comando da empresa na mão. À medida que os anos foram passando, a empresa foi perdendo características. Concorri a uma bolsa dada pelo então IPE, fui para os EUA e, aí, consegui fazer o chamado "corte psicológico" com a organização, isto é, consegui concluir, tenho de sair. Na altura, analisei três alternativas: regressar à universidade e montar uma empresa de estudos, ir para o grupo ITT ou para a Sapec, dos irmãos Velge, os quais me convidaram para ser administrador-delegado. Optei pela empresa de pequena e média dimensão, que tinha operações em Portugal e Espanha, sede em Bruxelas, e estava em sectores que eu já conhecia, como os adubos, e no sector mineiro. Fiquei como co-administrador-delegado, porque um dos Velge era o administrador-delegado e o outro o "chairman". Depois houve uma divergência estratégica no seio do grupo, da qual fui o protagonista, na medida em que o outro co-administrador-delegado, que era simultaneamente accionista, queria que a empresa seguisse determinados caminhos estratégicos com os quais eu não concordava. Tive o apoio do outro ramo accionista, que era o presidente, e isso levou o outro accionista a vender as suas acções e a sair da empresa e eu fiquei sozinho como administrador-delegado. Estávamos em 1989. Quando cheguei à Sapec, em 1981, estava quase tecnicamente falida. Nesse período, consegui fazer a reestruturação da empresa e lançar as bases para um novo ciclo de desenvolvimento e foi aí que começaram as divergências. A linha do Marc Velge era a de fazer o "revamping" das minas e investir numa fábrica de ácido sulfúrico e a minha visão era a de encontrar um novo "core business".

 

Como é que a política surge na sua vida?

Ao longo de todo este caminho, sou desafiado para a política. A primeira vez foi pelo ministro do Plano e das Finanças, que era o Sousa Gomes, para ser secretário de Estado da Coordenação Económica. Eu não aceitei e disse-lhe que a minha carreira era na gestão. Depois foi com o Nobre da Costa, que estava a formar um Governo de iniciativa presidencial do Eanes, o qual me convidou para ser ministro dos Assuntos Sociais, que na altura abarcava a saúde e a segurança social. Também disse que não. Quando vem o meu amigo Aníbal Cavaco Silva, a primeira aproximação foi para ser ministro da Agricultura e eu recusei porque havia assuntos a resolver na Sapec. Passados uns aninhos, o ministro Oliveira Martins sai das Obras Públicas e o Aníbal Cavaco Silva põe-me duas alternativas: ou vais para as Obras Públicas, Transportes e Comunicações ou vais para o Ministério do Comércio e Turismo. Se não aceitares, ponho o Ferreira do Amaral nas Obras Públicas. Também lhe disse que não.

 

E como é que se deixou finalmente convencer por Cavaco Silva?

Finalmente, as coisas na Sapec estavam a correr bem e, em 1993, os meus objectivos na época em relação à empresa estavam já consolidados. Tinha preparado o meu sucessor, o Antoine Velge, e aconteceu o seguinte. Cavaco Silva, depois de fazer duas tentativas de me levar para o Governo, fez outra de me levar para o Banco de Portugal para substituir o António Borges como vice-governador, salvo erro em 1992, e como já era a terceira negativa que lhe estava a dar disse-lhe: da próxima vez que tu precisares de mim, mas no Governo, eu aceito com uma condição, a de que a função seja motivante. E assim ficámos. Em finais de Julho de 1993, ele pergunta-me se eu vou ao Algarve e eu disse-lhe que não tinha a certeza e que estava a programar ir de férias na época pós-natalícia, dentro do hábito que tinha adquirido de ir para o Nordeste brasileiro nesta altura. E ele mandou-me um cartão onde escreveu o seguinte: economista não faz férias em Dezembro e muito menos em sítios tropicais. E eu entendi que ele me ia convidar em Dezembro. E assim foi. No feriado de 1 de Dezembro, ele pediu-me para passar por São Bento e convidou-me para ministro das Finanças. Eu não tinha pensado nisso. Estava convencido de que ele me ia convidar para uma das áreas da Economia, mas aceitei imediatamente e tomei posse no dia 7 de Dezembro.

 

A economia estava numa situação difícil. O que o fez aceitar o cargo?

A economia estava em recessão e a minha primeira intervenção foi a de dizer que iria criar condições para a retoma da economia. E depois, para gerir as expectativas, disse que a retoma ia ser lenta e difícil, mas ia acontecer progressivamente ao longo de 1994 e 1995. Em 1994, já crescemos 1% depois de uma recessão de -3% em 1993 e, em 1995, a retoma estava consolidada. E iniciou-se um novo ciclo de crescimento da economia portuguesa, que durou até 2001 e deixámos ao Governo de António Guterres um processo de retoma da economia sustentado que durou até 2011, em que o ritmo de crescimento foi acelerando. Deixámos uma boa herança. Sustentabilidade nas contas públicas, sustentabilidade nas contas externas e 30 pontos percentuais do PIB por privatizar, receitas que foram realizadas nos anos seguintes. E eu cheguei ao final de 1995 com uma carreira empresarial consolidada, tinha atingindo o topo no Grupo CUF e no país aos 31 anos, tinha feito o processo de recuperação da Sapec.

 

E aqui chegado, o que pensou?

Aos 53 anos, achei que era altura de iniciar um novo ciclo. Tinha tido uma carreira de gestão empresarial, tinha tido uma missão na política depois de ter recusado anteriormente quatro convites e tinha tido uma carreira académica que havia retomado de forma mitigada em 1990 na minha universidade, o ISEG. Era altura de reequacionar um novo ciclo para os próximos anos. A minha passagem pela política antecipou aquilo que eu já tinha definido uns anos antes. À medida que me aproximasse dos 60 anos, deixaria de ter funções executivas e regressaria à universidade e passaria a ter funções não-executivas em dois ou três projectos empresariais. Não como um mero não-executivo, mas como um semi­-executivo em dois ou três projectos empresariais que me motivassem. E mantive­-me como cidadão independente, dentro de uma visão estratégica que tenho para o país, e portanto sempre aberto a colaborações que me solicitassem.

 

O que aconteceu em 2010 quando foi negociar o Orçamento do Estado com o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, do Governo de José Sócrates?

Em Outubro de 2010, Pedro Passos Coelho, que eu mal conhecia, para surpresa minha, solicitou-me que eu chefiasse, como cidadão independente, um grupo do PSD para negociar a viabilização do Orçamento. Eu, na altura, disse ao Passos Coelho: olhe, não há muito a negociar. Pois ele não podia provocar uma crise política, mas ele quis negociar. Então acordámos numa estratégia. Na altura, a despesa total estava na casa dos setenta e tal mil milhões de euros, hoje está em 87 mil milhões de euros, o PSD tinha tomado uma posição pública de não aceitar o aumento do IVA de 21% para 23% nem as reduções de deduções. A estratégia que propus foi a seguinte: um pacote, o máximo de 500 milhões de euros de aumento da despesa, mas que nos concentrássemos em propostas qualitativas, como a criação de um Conselho de Finanças Públicas e a suspensão de novas parcerias público-privadas enquanto uma comissão de avaliação não identificasse todos os compromissos financeiros já assumidos. Apresentei toda a fundamentação por escrito de todas as propostas e disse ao Fernando Teixeira dos Santos: eu posso tentar convencer o meu mandante a aceitar o aumento do IVA desde que exista uma redução da Taxa Social Única. Mas o que eu tinha verificado era que o Sócrates não queria o acordo, queria a ruptura. E, depois de termos estado naquele circo mediático que eram as reuniões na Assembleia da República, eu disse ao Fernando Teixeira dos Santos: o que proponho é o seguinte, reunimos só os dois, tentamos o "trade-off" nos pontos em aberto, que era a TSU, o IVA, a comissão de avaliação das PPP, e assim foi. Reunimos só os dois na Assembleia da República e, quando chegou ao meio-dia, o Teixeira dos Santos disse-me que tinha de consultar o seu mandante. Fui para a área reservada ao PSD, o tempo passou-se e, por volta das três horas, sou informado de que a estratégia da outra parte era a de provocar a ruptura por volta da hora do telejornal, que era o dia em que Cavaco Silva ia anunciar a sua recandidatura à Presidência da República. Às quatro da tarde, resolvo sair com o álibi de que tinha tido um problema em casa e que me ia ausentar. Tendo percebido a táctica da outra parte, o meu objectivo era fazer com que a ruptura não acontecesse naquele dia.

A comunicação social começa a dizer que Eduardo Catroga regressa a casa com um problema familiar grave, caem-me em casa a minha mulher e as minhas filhas. Não havia problema nenhum, era apenas uma desculpa. Por volta das seis tarde, o Fernando Teixeira dos Santos telefona­-me a dizer que já estava pronto para uma conversa e eu disse-lhe: tenho aqui um problema familiar grave, encontramo-nos amanhã. E não houve ruptura das negociações. No dia seguinte, combinámos encontrarmo-nos às 10 da manhã e ele veio com considerandos novos para provocar a ruptura. Eu já estava à espera, sou um bocado emotivo, deixei o coração falar, e à saída disse à comunicação social o que se tinha passado no dia anterior e, segundo todos os comentários, o Sócrates perdeu a batalha mediática. Aquilo foi extraordinariamente tenso, a família estava preocupada e a minha mulher, que é farmacêutica, resolveu dar-me um comprimido para dormir. Eu caio redondo na mesa, elas é que me levaram para o quarto e acordo às seis da manhã fresquinho com o telemóvel com várias chamadas do Teixeira dos Santos para mim. Ele volta a entrar em contacto comigo para ir ao Ministério das Finanças para retomar as negociações, eu disse-lhe que não ia ao Ministério e propus que nos encontrássemos em minha casa e ele aceitou. Eu senti que ele queria chegar a acordo antes das oito porque havia uma comunicação ao país do Presidente da República, na sequência do Conselho de Estado, e eu não queria chegar a acordo antes das nove, dez da noite. Eu cedi na TSU, houve aumento do IVA e ele aceitou a criação da comissão de avaliação das parcerias público-privadas, fechámos e assinámos o acordo.

 

Depois voltou a envolver-se com o PSD e ficou célebre a sua tirada dos pentelhos na SIC.

Para surpresa minha, em Março de 2011, o Passos Coelho pediu-me outra missão política, a de coordenar uma proposta para as bases do programa eleitoral. Eu acabei por dizer que sim, pois, como cidadão independente, entendi que a missão era importante para o país. Propus-me terminar em Julho, só que depois acabou por haver uma aceleração da crise política com o PEC IV e que culminou com o pedido de ajuda externa. Eu era para ter três meses para concluir aquela missão e tive de acelerar a metodologia por causa da chegada da troika. Aconteceu que eu faço a proposta de programa eleitoral e depois, quando foi transformada em programa do PSD, fizeram umas alterações das quais só me apercebi "a posteriori". Uma delas, por exemplo, relativamente à Caixa Geral de Depósitos. Na minha proposta, a Caixa Geral de Depósitos mantinha-se pública, no programa eleitoral estava que se mantinha assim enquanto durasse o programa de assistência financeira. Fizeram algumas alterações em que não fui ouvido nem achado. Simplesmente aconteceu que as únicas pessoas que estavam dentro de tudo era eu e o Carlos Moedas e, portanto, só nós é que podíamos defender bem a coerência de todo o programa. Acontece que o Carlos Moedas entra na política, aceita ser candidato por Beja e, às tantas, desaparece-me. Pedem-me para defender as bases do programa e eu cometi a asneira de aceitar uma grande concentração de entrevistas. Eu estava saturado depois de ter trabalhado a mata-cavalos e tinha verificado, com o devido respeito, que a maior parte dos jornalistas que me estavam a entrevistar nem sequer tinha lido o programa e pegavam só em pequenas coisas. Eu estava saturadíssimo e, sobretudo, muito desapontado com a qualidade das perguntas, e o José Gomes Ferreira, que é uma pessoa por quem até tenho consideração, engonhou na Taxa Social Única ou no IVA, já não me lembro, e eu às tantas disse assim: ó José Gomes Ferreira, desculpe lá, estamos aqui perante uma situação difícil no país, há uma proposta abrangente em vários domínios e você está a insistir, desculpe lá que lhe diga e sai-me aquela… Em vez de minudências ou insignificâncias, utilizei o jargão popular da minha aldeia, os pentelhos.

 

cotacao Aquilo [pentelhos] é um jargão popular usado muito no Alentejo e em certas zonas do Ribatejo para dizer minudências. E eu até pedi desculpa por usá-lo.

Os chineses são uns parceiros estratégicos importantes, têm sido uns accionistas cooperativos, que cumprem o que prometeram.

 Sabe que as pessoas agora, na brincadeira, em vez de dizerem pentelhices, dizem catroguices. Como é que se sente em relação a isso?

Divirto-me. Depois de terem aparecido umas opiniões púdicas… aquilo é um jargão popular usado muito no Alentejo e em certas zonas do Ribatejo para dizer minudências. E eu até pedi desculpa por usá-lo. O meu interlocutor ficou assim a olhar para mim…

 

Está arrependido de ter dito?

Não fiquei arrependido. Saiu. Talvez não devesse ter saído, mas saiu.

 

A geringonça está a funcionar?

A geringonça está a funcionar, mas na direcção estratégica errada. A direcção estratégica correcta é aquela que diminui o risco-país, que atrai investimento produtivo, e melhora a produtividade e competitividade. E, se nós verificarmos a situação em Outubro de 2015 e a situação actual, constatamos que o risco-país medido pela taxa de juro das OT a 10 anos multiplicou por três. A direcção estratégica correcta é uma política de despesa pública que, no mínimo, congelasse a despesa nominal. E a despesa aumenta de 84 mil milhões para 87 mil milhões de euros, o que é compensado pelo aumento de impostos que, directa ou indirectamente, é pago pelas famílias e pelas empresas. Como está na direcção estratégica errada, dando sinais errados aos investidores, e não fazendo reformas estruturais, isso acaba por influenciar negativamente o crescimento potencial da economia, logo leva a um empobrecimento relativo a prazo.

 

É presidente do Conselho Geral e de Supervisão da EDP. Como é que se relaciona com os accionistas chineses da empresa?

Eles, como os outros accionistas, estão representados no Conselho Geral e de Supervisão, e depois há um conselho de administração executivo que executa os planos que propõe ao conselho. Há uma coabitação saudável e cooperativa entre estes dois órgãos sociais e os chineses são os maiores accionistas a título individual da empresa (21,35%). São parceiros estratégicos importantes, têm sido uns accionistas cooperativos que cumprem o que prometeram. Respeitam a autonomia estratégica da EDP, dão estabilidade accionista e, portanto, o relacionamento tem sido muito fácil.

 

Em 1816, Napoleão disse: quando a China acordar, o mundo tremerá…

A China, historicamente, até ao século XVIII, representou sempre 25% da população mundial e 25% da riqueza. Depois entrou em declínio em todo o século XIX e, no século XX, só começou a recuperar nos últimos 30 anos, quando resolveu abandonar a ortodoxia comunista e introduzir, progressivamente, elementos de iniciativa privada.

 

George Soros chama-lhe capitalismo de Estado.

É uma fase. Actualmente, na China, o sector privado da economia já representa 60% do PIB. É verdade que as grandes empresas nos sectores infra-estrutural e financeiro são ainda propriedade do Estado. É uma economia em transição para uma economia de mercado, a que eles chamam de economia socialista de mercado. Não sei bem o que é isso. É uma economia que está em mutação, ninguém pode prever como será em termos de modelo político-económico daqui a 10, 20, 50 anos, mas o certo é que eles têm sido, nos últimos 30 anos, ganhadores da globalização. Transformaram-se na fábrica do mundo. Acumularam reservas financeiras significativas, fizeram investimentos em infra-estruturas enormes e estão a desenvolver o sector privado da economia. É uma economia em transição e o modelo final é um ponto de interrogação. Numa primeira fase, foram comprando títulos de dívida pública dos países da OCDE, depois foram comprando activos infra-estruturais ligados a recursos naturais e agora estão numa terceira fase, a de fazer aquisições de empresas que lhes permitam subir na cadeia de valor nos vários sectores da economia. Não há dúvida de que caminham para ser a maior economia do mundo.

 

Que planos profissionais tem ainda?

Decidi não me reformar. Fiz este ano 50 anos de vida profissional, espero ainda fazer 60 de vida profissional e, seja em projectos empresariais ou pessoais, vou continuar a ter uma vida activa enquanto me sentir com forças físicas e intelectuais. A política não faz parte dos meus horizontes. Como nunca fez. Aceitei missões sempre na óptica de servir o país. E hoje, de quando em quando, faço algumas intervenções públicas, sempre nessa perspectiva. 


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