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Miguel Fragata: Receio que as crianças de hoje possam tornar-se adultos incapazes

Como explicar a crise dos refugiados às crianças? E a morte? A dupla Miguel Fragata e Inês Barahona tenta desmontar tabus em espectáculos como “Do Bosque para o Mundo”, que está no Teatro São Luiz, de 22 a 27 de Novembro.

Miguel Baltazar
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Duas mulheres relatam a travessia solitária de um rapaz afegão. De uma criança refugiada. E a história desta criança cruza-se com a história colectiva. É sobre isso que fala "Do Bosque para o Mundo", um espectáculo de Miguel Fragata e Inês Barahona que estará no Teatro São Luiz, em Lisboa, de 22 a 27 de Novembro. Há muito que esta dupla junta arte e educação nos seus projectos artísticos. Miguel e Inês trabalham com crianças e para crianças, e não só. Criam espectáculos para todos. Não gostam de rótulos e tentam desconstruir tabus, como fizeram em "A Caminhada dos Elefantes", uma peça sobre a morte, que esteve no festival "Chantiers d'Europe", em Paris. Actores e dramaturgos, Miguel Fragata e Inês Barahona conheceram-se em 2007 no CCB, onde trabalharam com Madalena Victorino. Depois continuaram a fazer espectáculos juntos e formaram a associação cultural Formiga Atómica. Em cena, têm também a segunda versão da "Visita Escocesa", no Teatro Nacional D. Maria II. Seguir-se-á, no mesmo teatro, um projecto sobre a adolescência.  


"Do Bosque para o Mundo" começou por ser um espectáculo sobre a forma como as histórias tradicionais e as histórias da actualidade se cruzam. Interessava-me ir à origem das histórias iniciáticas, na sua qualidade de preparar as pessoas para o mundo, e afastar-me da versão actual das histórias tradicionais, já muito censuradas, polidas e trabalhadas para serem politicamente correctas. Encontrar a origem das histórias tradicionais não é nada fácil. Elas começaram a ser contadas de boca em boca, partilhadas em comunidade, e foram sendo transformadas ao longo dos tempos. Na Alemanha, os irmãos Grimm foram os primeiros a andar, de terra em terra, a recolhê-las e a registá-las. Logo aí, há uma alteração que qualquer registo provoca. Além disso, ficámos a saber que, quando os Grimm tinham o repertório pronto, terão sido pressionados a direccioná-lo para as crianças, o que levou a uma adulteração daquilo que são os temas mais negros, apesar de as suas histórias continuarem carregadas de negritude aos olhos de hoje.
Começámos a cruzar estas histórias iniciáticas com o universo da actualidade, sempre atentos às notícias. Percebemos que o número de crianças refugiadas é brutal e decidimos que esse seria o grande tema - para nós, o teatro tem uma função interventiva. Tem de haver um sentido para fazer aquilo que fazemos e a questão dos refugiados é tão brutal que se impõe. E pensámos na forma de abordar o tema na perspectiva dos mais novos. Começámos à procura de histórias de crianças que passaram por essa experiência e detivemo-nos no percurso de um rapaz afegão que, sozinho, fez uma travessia até Inglaterra. Na peça, há duas mulheres que relatam a sua história e que, no fundo, nos convocam para entrar na vida deste rapaz. Como é que uma criança vive uma situação destas? Reflectimos sobre isso e sobre a forma como esta história se cruza com a história da humanidade, e de que maneira é que estas histórias se influenciam. A história deste rapaz, ao qual chamámos Farid, está inequivocamente ligada à história colectiva.

As histórias tentam ser o retrato do mundo e por isso eu não podia estar mais em desacordo com a ideia de limar as histórias. Na Dinamarca, considerado o país mais feliz da Europa, as crianças são tratadas como pessoas inteiras. E as histórias que lhes são contadas apresentam-se muito mais negras do que aquelas que se contam noutros países, e isso influencia a maneira como depois se olha para o mundo - se as histórias revelarem um mundo terrível, o mundo, depois, se calhar, não parece tão mau. As crianças ficam com outra preparação.
Tenho duas filhas, a mais velha tem cinco anos, e não suavizamos as histórias que lhe contamos. Temos uma abordagem o mais natural possível, nunca tivemos necessidade de evitar aquilo que, à partida, poderia ser uma história menos adequada. E, de facto, para esta nossa filha, a Vitória, as histórias têm uma importância enorme.
Acho que existe imenso preconceito no que respeita à criação para a infância. Penso que devemos ser mais autênticos na forma como lidamos com as crianças, devemos olhá-las como pessoas, elas não são uma parte do percurso de uma pessoa, elas já são pessoas, são pessoas em formação, tal como somos todos nós. De uma forma equilibrada, devemos expô-las à realidade, não podemos estar constantemente a limar esquinas e a tapar tomadas. Se o fizermos, estamos a passar uma imagem errada do mundo, estamos a dizer-lhes que o mundo é um lugar seguro, que não tem esquinas onde elas podem fazer arranhões ou apanhar um choque. Acho que a tendência para suavizar, limpar e arrumar pode, de alguma forma, desresponsabilizar-nos do papel que é conduzir uma criança. Se existir uma sobreprotecção, podemos estar a gerar crianças muito incapazes. Receio que as crianças de hoje possam tornar-se adultos muito incapazes para lidar com frustrações.
Quando fizemos "A Caminhada dos Elefantes", uma peça sobre a morte, trabalhámos com uma psicóloga que nos disse que, nos últimos anos, tinha encontrado muito mais adultos com dificuldade em lidar com a perda. E que estes adultos tinham sido crianças às quais, num dado momento da infância, havia sido vedada a possibilidade de lidar com o luto. Ao vedar-lhes emoções, estamos a vedar-lhes uma parte do mundo com a qual elas vão ter de se confrontar.

"A Caminhada dos Elefantes" partiu de uma vontade que eu tinha de fazer um espectáculo sobre a morte - como é que podemos falar sobre a morte com os mais novos? Fizemos um trabalho junto de mais 200 crianças e tentámos perceber o que é que a morte significava para elas. Regra geral, a morte era muitíssimo bem entendida pela maior parte das crianças, sobretudo pelas mais novas. O problema existia, sim, em crianças que já tinham vivido a morte de alguém próximo e às quais tinha sido vedada a possibilidade de fazer um luto. A dificuldade começa quando as crianças percebem que, para os adultos, o tema é um tabu. A dada altura, perguntámos-lhes se, caso alguém próximo morresse, elas preferiam saber logo ou se preferiam ser "enganadas". Um rapaz disse que preferia ser "enganado" porque assim teria tempo para, sozinho, lidar com a tristeza. Porque ele teria de esconder, dos pais, essas emoções. Elas sabem que os adultos não sabem lidar com a tristeza de uma criança.

Sou do Porto, estudei na escola alemã, formal e exigente, mas muito mais aberta à experimentação. Aos seis anos, fiz uma peça de teatro e, a partir desse dia, dizem, eu disse que era aquilo que iria fazer para sempre. A peça baseava-se num conto tradicional alemão que se chamava, traduzindo para português, "A Pequena Panqueca". É uma história bastante alemã de uma panqueca que salta da frigideira de duas velhinhas e que se passeia pelo bosque, mas não se deixa caçar pelos animais. No final, cruza-se com umas crianças que estão a passar fome e, então, deixa-se comer, num acto de altruísmo. Eu era a panqueca. (risos)
Quando acabei a escola, inscrevi-me na ESMAE (Escola Superior de Música, Artes e Espectáculo) no Porto, fiz alguns espectáculos e depois fui para Lisboa, onde trabalhei com a Madalena Victorino, no CCB, e esse foi um momento fundador desta minha visão quase missionária do teatro. Foi lá que conheci a Inês (Barahona) e depois começámos a trabalhar com muitas instituições, sempre com objectos artísticos que tinham que ver com a ideia de ligação entre as artes e a educação. E sempre com a ideia de transformação. Fundámos a (associação) Formiga Atómica - sim, somos a família atómica! - e criámos aquilo que pretendem ser espectáculos sem rótulo, que não se limitam a um segmento e, por isso, por vezes, temos dificuldade em lidar com a divisão que os espaços de programação propõem.
Acho que se olha para o trabalho para a infância como algo à parte e ainda não integrado na dita programação geral. A nossa luta tem sido sempre a de combater esse estigma. Muitas vezes, eu também tenho dificuldade em lidar com esse rótulo - de "trabalho para a infância". Aquilo que procuramos fazer não é um trabalho específico para uma faixa etária. É um trabalho pensado para um público específico, mas para outro também. É um trabalho para todos.

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