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O tenebroso prazer da inveja

Carlos Morais José cria um estimulante livro sobre as tentações humanas, partindo de um personagem que, por inveja, rouba um original de um grande poeta português perdido no Oriente.

05 de Novembro de 2016 às 12:30
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Carlos Morais José
"O Arquivo das Confissões"
Livros do Oriente, 167 páginas, 2016


Spinoza acreditava que a felicidade consistia essencialmente em ser bom. E ser bom supunha seguir as normas da razão face às das paixões. E se todos estivermos enganados e, afinal, a felicidade for um lugar negro onde nos debatemos em busca de uma luz? Qualquer que ela seja. A inveja poderia continuar ser um pecado mortal, mas suavizado pelas circunstâncias. Sabemos que nos podemos arrepender das coisas que fizemos mas nunca das que fizemos como um desejo pessoal. Esse é, talvez, um dos dramas humanos: ele não reside em sofrer por se ter equivocado mas sim em não ter tido prazer por não se ter atrevido a assumir certos riscos.

Só no incerto está o desfrute das coisas. A certeza é uma chatice, poderemos dizer. Os pecadores impenitentes buscam, por vezes às cegas, o sentido da vida, enquanto um santo se conforma com a segurança que proporcionam os dogmas. É neste mundo nebuloso que se situa "O Arquivo das Confissões - Bernardo Vasques e a Inveja", de Carlos Morais José, um dos mais fascinantes e perturbadores livros de língua portuguesa que li nos últimos anos.

A sua beleza nasce do esgar de alguém que, defronte de um espelho - a confissão - mostra as suas terríveis memórias.

Vamos ao passado: um padre católico, que ruma ao Oriente, conhece um degradado padre protestante que, numa taberna de Singapura, lhe lê um documento (que deveria fazer parte de um misterioso Arquivo das Confissões existente em Macau, onde os jesuítas guardavam esses papéis) de Bernardo Vasques, um português que, no século XVI, por inveja, roubou um livro de versos ao maior poeta português. Começa aí a terrível viagem de Vasques, sempre cometendo crimes em nome de uma inveja qualquer, em busca de que os pecados possam ser castigados.

Num dos momentos sombrios da vida de Bernardo Vasques, este trai a confiança dos oficiais e padres da caravela onde segue, liderando uma terrível chacina. Na sua confissão, Vasques recorda: "Não imaginavam os ricos senhores o destino que eu secretamente lhes traçava. Eles eram os representantes da Ordem, portanto perfilavam-se como os que eu teria obrigação de destruir. Saboreava de antemão os resultados da minha vileza: mirando cada um deles, previ o modo como morreria: sofrido, ignoto, cadáver atirado ao mar, sem deixar rasto. (…) A demora em reconhecer o meu valor custar-lhes-ia caro, demasiado caro. Tivessem eles sabido da qualidade do homem que inocentemente tinham introduzido a bordo".

Mas é o livro que roubou por inveja que o cega. Sabe os poemas de cor e por isso a destruição dos papéis não o incomoda. Mas não consegue escrever o que decorou. A inveja é total face ao poeta que rouba: "Ao tomar a resolução, senti-me percorrido por uma suave e amável paz. Sabia muito bem o que fazer: ele sofreria. Não como eu, mas por uma perda irreparável. Não o mataria, não lhe roubaria a vida, mas sim a obra. (…) Aquela obra era demasiado genial para lhe ser permitida a existência. Nós, os mortais, não aguentaríamos viver à sua sombra. Destruí-la seria um acto humanitário, uma bondade digna do grande amigo do Homem". Bernardo Vasques corrói a sua vida em nome da inveja. E da posse. Percorre às cegas o sentido da vida. E, no meio do que destruiu, não o descobriu.


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