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02 de Outubro de 2014 às 00:58

Declaração de amor de francês em Berlim

A França de Hollande começou por recusar a austeridade e via-sacra das reformas, e a economia estagnou, o défice derrapou e o desemprego e a dívida batem recordes

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Enquanto pensa como vai emagrecer o Estado, a Itália de Renzi meteu 80 euros na carteira de cada contribuinte, e a economia afundou e o desemprego e a dívida batem recordes.

 
Portugal ingeriu metade da austeridade prescrita pela troika e boa parte pela porta travessa dos impostos (Ratton ‘oblige’), a economia já rola mas a meio-gás, o desemprego retrocedeu mas persiste em 14%, o rácio da dívida parece finalmente estagnar mas bate recordes em termos absolutos - em larga medida devido ao inacreditável número de 268 entidades cujos passivos podem vir parar aos nossos bolsos, só que não nos diziam.
 
A Irlanda conformou-se com a austeridade, não virou a cara às reformas e a economia disparou, muito embora seja cedo para tirar o champanhe do gelo: 7,7% homólogos no segundo trimestre é crescimento que nem na China mais se produz, mas pode não durar e o desemprego escreve-se com dois dígitos e a dívida teima também aqui em furar recordes. 
 
E podíamos continuar a viajar por essa Europa afora para chegar à mesma conclusão: neste imenso deserto de desemprego e de dívida que está a secar as opções - não tanto as nossas e menos ainda as dos nossos pais reformados, mas sobretudo as dos nossos filhos - sobra ainda um grande oásis chamado Alemanha. 

 

E agora, Europa? Que fazes tu quando, em vez de unir os destinos dos teus povos, pareces fazê-los divergir irremediavelmente?

 

Nestes últimos dias assistimos a dois episódios singulares que, juntos, podem fornecer pistas sobre o que estará para vir neste plural europeu. Um primeiro-ministro francês dizer em Berlim e em alemão que "ama as empresas" e que são elas que geram riqueza, como fez Manuel Valls dias depois de o seu governo ter perdido a maioria absoluta no Parlamento devido à dissidência de correligionários socialistas que parecem acreditar que mais riqueza e emprego fazem-se com o Estado a mandar abrir e fechar buracos; e, ao mesmo tempo, ver um ministro alemão (da Economia, líder do SPD) a defender o investimento público, não é quadro que se emoldure na convicção de que é fruto da inspiração do acaso. Ambos terão tornado público um diálogo ensaiado, falando tanto um para o outro, como cada um para dentro das suas fronteiras.

 

A França (pelo menos quem tem a missão de turno de a governar) não tem ilusões de que a sua economia seja mais capaz de financiar um Estado que absorve mais de metade do que por lá se produz. Vai ter de cortar no segundo se quiser desafogar o primeiro que paga o grosso da factura do emprego público e prestações sociais.

 

E a Alemanha sabe que tem de deixar de ser a campeã mundial da poupança e, simultaneamente, das que menos investe no seu próprio futuro. A metade esquerda do seu governo quer mais dinheiro público investido na modernização de estradas e pontes, algumas das quais em risco de ruir. A metade direita (CDU) quer contas públicas sem défices, e terá atravessados na garganta escândalos como o do novo aeroporto de Berlim (duas vezes mais caro, demorado e desajustado do que o projectado), defendendo que o essencial do novo investimento seja feito por privados, captando recursos de fundos de pensões, por exemplo, e poupança de famílias que têm sido enterrada em "resorts" na costa espanhola que nunca encontraram comprador e em muito lixo fabricado em bancos de investimento norte-americanos. (Segundo um estudo do DIW publicado no ano passado, desde 1999 os alemães perderam 400 mil milhões de euros, mais do dobro do PIB português, em investimentos desastrosos feitos no estrangeiro).

 

Tendo o BCE já feito o que podia - e até anunciado que ousará fazer o que provavelmente não pode - para tentar travar um cenário de estagnação prolongada dos preços e da economia, foi sobretudo para a metade direita do governo da Alemanha que o FMI falou nesta semana quando disse que chegou a hora do investimento público.

 

Não foi para a França. E menos ainda para Portugal, que tem um Ministério da Dívida que gasta tanto em juros como o da Educação em professores, muitas e boas estradas e até boas escolas onde ainda falta papel higiénico, comprovo, mas sempre é mais fácil por um saquinho de Kleenex na mochila da miúda do que meia dúzia de janelas bem calafetadas.

 

Portugal precisa de recuperar investimento público, esmagado nestes anos de ajustamento brusco à realidade, mas para preservar o que foi e está bem feito. Quanto ao demais, será bom ter sempre presente que, num contexto de excesso de liquidez e de crédito relativamente barato, quem pede mais dinheiro público em mais infraestruturas está a pedir, depois da socialização das perdas do BPN, a socialização do risco de projectos que, pelos vistos, o sector privado não está interessado em suportar.

 

Foi você que pediu mais PPP ruinosas? 

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