Opinião
Ventos de mudança varrem o mercado de capitais
Para que a reforma nos mercados financeiros produza efeitos, é necessário se torna que todas as vertentes encaixem. Resta saber se a onda reformista se limitará aos mercados de capitais.
Daniel Salgado
Foi neste contexto que, em 1998, o Conselho Europeu adoptou um «Plano de Acção para os Serviços Financeiros» com o objectivo de remover completamente os obstáculos à criação do mercado único no âmbito dos serviços financeiros.
O Plano de Acção, tendo estabelecido quatro objectivos principais a alcançar (sendo de destacar a conclusão do mercado único para transacções de grande volume e o desenvolvimento de mercados abertos e seguros para os serviços financeiros de retalho), identificou uma quase centena de medidas legislativas a aprovar pela Comissão e pelo Conselho Europeu e a adoptar pelos Estados membros no âmbito dos serviços financeiros até 2005.
Identificaremos, de seguida, algumas das medidas legislativas que se encontram em curso.
Proposta de Directiva relativa ao abuso do mercado
Esta proposta de directiva (bem como o Parecer do Comité das Autoridades de Regulamentação dos Mercados Europeus de Valores relativo às Medidas de Implementação do nível 2 da Proposta de Directiva de Abuso do Mercado) pretende que todos os Estados Membros sejam dotados de meios efectivos para a investigação e punição dos crimes de utilização de informação privilegiada e de manipulação do mercado, por forma a (re)estabelecer a confiança dos investidores nos mercados financeiros.
A proposta de directiva, bastante extensa e detalhada, estabelece, entre outras, as circunstâncias e a forma pela qual os emitentes estão obrigados a divulgar (nova) informação aos mercados, bem como directrizes relativas à análise financeira (research) e informação similar divulgada pelos intermediários financeiros e a obrigação de estes divulgarem a eventual existência de conflitos de interesse.
Pretende-se, além do mais, introduzir medidas que permitam:
– Imprimir maior celeridade ao próprio processo sancionatório. Neste sentido, os Estados membros deverão reforçar as medidas de controlo e de aplicação de sanções de cariz administrativo.
– Facilitar a aplicação de sanções por abuso do mercado, passando a responsabilidade pela violação das regras a ser meramente objectiva, isto é, não será necessário provar a intencionalidade de quem cometeu a infracção.
Proposta de Directiva relativa ao prospecto único
O objectivo desta proposta de directiva é permitir aos emitentes oferecer os seus valores mobiliários em todo o espaço da União Europeia, utilizando um prospecto único, nos termos aprovados por uma autoridade de supervisão, sem necessidade de obter nova aprovação por qualquer outra autoridade de supervisão de um outro Estado Membro em que os valores mobiliários sejam oferecidos.
Em concreto, os emitentes de acções e os emitentes de obrigações em que o valor nominal unitário de cada obrigação seja inferior a 5.000,00 euros, terão de solicitar às autoridades de supervisão dos respectivos países de origem a aprovação do prospecto, sempre que pretendam efectuar qualquer oferta pública desses valores mobiliários, ou requerer a sua admissão à negociação em mercado regulamentado, independentemente do Estado Membro em que se encontre situado o mercado onde as acções e/ou obrigações venham a ser concretamente oferecidos ou cotados.
Esta solução legislativa, que parece aliás contrária ao próprio espírito da liberdade de circulação de capitais, tem sido muito criticada por ser limitativa da concorrência entre as bolsas de valores dentro do espaço da União Europeia.
Já no que respeita aos emitentes de obrigações cujo valor nominal unitário de cada obrigação seja igual ou superior a 5.000,00 euros, bem como aos emitentes de «warrants» autónomos, estes poderão solicitar a aprovação do prospecto em qualquer um dos Estados Membros onde pretendam realizar a oferta pública ou a admissão à negociação em mercado regulamentado.
No seguimento desta proposta de directiva, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, aprovou e colocou à discussão pública um novo regime jurídico para os «warrants» autónomos, procurando manter em Portugal o volume de emissões realizado por emitentes estrangeiros no nosso país, defendendo, desta forma a reputação que já conquistou para Portugal de «Delaware» europeu para as emissões de «warrants» autónomos.
Proposta de Directiva de Serviços de Investimento
Como é sabido, os intermediários financeiros que operam no espaço da União Europeia beneficiam do chamado “passaporte comunitário” podendo, em conformidade, estabelecer-se ou prestar livremente serviços noutros Estados Membros. É, contudo, público, que os intermediários financeiros se têm lamentado das restrições que os Estados Membros de destino impõem muitas vezes ao exercício da respectiva actividade nos seus territórios.
Assim, apresentada pela Comissão Europeia em Novembro de 2002, a proposta da nova directiva dos serviços de investimento, estabelece que as regras que deverão ser seguidas por um intermediário financeiro no exercício da actividade noutro Estado Membro deverão ser as regras a que o mesmo se encontra sujeito no respectivo país de origem.
Porém, em nosso entender, esta proposta de directiva é altamente responsabilizadora dos intermediários financeiros e, em certos aspectos, mais restritiva que a actualmente existente, o que a torna alvo de críticas, ao prever, nomeadamente, a obrigatoriedade de os intermediários financeiros trazerem liquidez aos mercados, o que lhes acarretará custos acrescidos ou, ainda, a obrigatoriedade de respeitarem determinados princípios de transparência após a realização de transacções.
Outras alterações a considerar
Mas os ventos não sopram somente do lado da União Europeia.
Os intermediários financeiros terão igualmente num futuro próximo que se adaptar às novas exigências do Comité de Basileia de Supervisão Bancária que veio impor, através do denominado “New Basel Capital Accord” ou mais simplesmente “Basileia II”, novas e mais exigentes regras relativas aos fundos próprios.
Por outro lado, o próprio International Accounting Standard Board viu reconhecido o seu labor de anos, na exigência imposta pela União Europeia aos emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em qualquer mercado regulamentado, de organizarem as respectivas contas consolidadas de acordo com os International Accounting Standards, já a partir de 1 de Janeiro de 2005.
Como foi reconhecido pelo Comité de Sábios, chefiado por Alexandre Lamfalussy, o processo legislativo, em especial ao nível da União Europeia, era demasiado lento e rígido para permitir a introdução de reformas dentro da calendarização estabelecida pelo Conselho Europeu no Plano de Acção.
Contudo, o clima pós-Enron e pós-WorldCom, entre outras, favoreceu a introdução de medidas mais severas, bem como a atribuição de poderes mais amplos às autoridades de supervisão para disciplinarem melhor as actividades dos intermediários financeiros e, igualmente, reagirem contra os infractores.
Por essa razão, quando os intermediários financeiros bramiam contra as restrições que lhes eram impostas pelos Estados Membros de destino e viam com bastante optimismo a introdução de algumas mudanças, estavam longe de suspeitar que estas viessem a ser de certa forma mais responsabilizadoras.
Conclusão
Para que a reforma produza plenamente os seus efeitos, necessário se torna que todas as suas vertentes encaixem como as peças de um «puzzle».
Resta agora saber se a onda reformista se limitará aos mercados de capitais, ou se irá estender aos outros ramos da actividade financeira, à banca e aos seguros.
Daniel Salgado
Advogado
Miranda, Correia, Amendoeira & Associados