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29 de Dezembro de 2006 às 13:59

Somália: nova crise com o Islão em fundo

A autoproclamada União dos Tribunais Islâmicos que tomou nas suas mãos o controlo da capital Mogadíscio, com a colaboração de alguns dos "senhores da guerra" somalis, desde o início desafia abertamente a autoridade do Governo de Transição, ...

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A autoproclamada União dos Tribunais Islâmicos que tomou nas suas mãos o controlo da capital Mogadíscio, com a colaboração de alguns dos "senhores da guerra" somalis, desde o início desafia abertamente a autoridade do Governo de Transição, produto de prolongadas negociações entre as várias facções somalis que, desde a queda de Syad Barre, em Janeiro de 1991, tomaram conta das ruas da capital e da província incutindo o terror e fazendo da Somália uma terra sem rumo.

As operações militares americanas, com ou sem ONU, nunca forma bem-sucedidas pois a barbárie dos "senhores da guerra" chocava nas imagens televisivas e obrigava à retirada das tropas que poderiam vir a fazer, não sem um preço alto, a diferença. Assim, depois de uma primeira intervenção em Dezembro de 1992, os soldados americanos humilhados retiram-se em Março de 2005. O caminho ficou aberto à milícias dos "senhores da guerra" que faziam (e fazem) do país um monumental teatro de crimes.

Se a União dos Tribunais Islâmicos trouxe alguma coisa de novo foi um terror acrescido que dominou os "senhores da guerra" e os levou a realinharem-se. Uns ao lado da UTI, a quem emprestaram veículos e material de guerra, outros ao lado do Governo de Transição quando este tomou forma e se conseguiu instalar no país.

A 5 de Junho de 2006, a UTI toma conta da capital Mogadíscio e leva consigo alguma tranquilidade. Uma tranquilidade sinistra pouco inspirada no Islão mas muito na sua interpretação feita pelos talibãs afegãos. Mesmo assim mantém-se o apoio popular e o de alguns maleáveis "senhores da guerra" que não viram ameaçados os seus interesses.

Ao ameaçarem, a 20 de Dezembro, o Governo de Transição, sedeado em Baidoa, e clamarem por uma "Jihad" contra as forças cristãs etíopes que o apoiam, os Tribunais Islâmicos ameaçaram um velho inimigo com quem combateram pelo controlo territorial do Deserto do Ougaden. Uma guerra que envolveu a Somália e a Etiópia numa zona hostil, sem riquezas naturais conhecidas, e levou a uma pesada derrota somali.

Durante anos, nas décadas de 80 e 90, a Etiópia recebeu na zona fronteiriça do Ougaden, a algumas centenas de quilómetros de Hartishek incontáveis refugiados somalis que na verdade eram combatentes ou potenciais combatentes do(s) regime(s) somali(s).

A UIT fez recurso ao aliado menos aconselhável: a Eritreia que não resistiu ao seu ódio pela Etiópia enviando para o teatro de guerra alguns milhares de soldados. Esta intervenção recente aliado ao pelo a uma "Jihad" que terá atraído combatentes eritreus, sírios e líbios, precipitou a entrada em força do poderoso Exército etíope e da sua Força Aérea, que em poucos dias fizeram cair as posições dos islamitas uma atrás da outra empurrando-os para Mogadíscio onde esperavam confrontar, como o fizeram com sucesso contra os americanos, as tropas governamentais e os seus apoiantes etíopes. Sem sucesso. As forças governamentais optaram por deixar Mogadíscio cair no caos e parecem ter optado pelo cerco.

Os autoproclamados Tribunais Islâmicos recorreram ao recrutamento forçado e começaram a perder os apoios que lhe advinham da imagem de ordem que haviam imposto em Mogadíscio. Quinta-feira pareciam ter abandonado a capital para evitarem a tenaz feita por Norte e Sul pelas tropas etíopes e governamentais. Resta-lhes o controlo de uma faixa costeira e poderão estar a retirar para a cidade portuária de Kismayo 500 quilómetros a Sul, uma das poucas zonas sob o seu controlo e onde se podem reagrupar, retirar para a mata e prolongar dali uma guerra de resistência.

Para Washington, o apoio tácito à intervenção etíope liga-se estritamente ao seu fantasma: a Al-Qaeda de quem se diz ter ligações nos Tribunais Islâmicos – nada o confirma, mas nada o desmente. O rumor e os apelos a uma Guerra Santa contra "os cristãos etíopes" são razões suficientes para Washington. A ONU esta semana foi incapaz de concretizar uma Resolução e o envio dos oito mil soldados da força de manutenção de paz da União Africana, organização também dividida e sem a determinação para uma intervenção que evite a queda da Somália no caos que foi durante mais de uma década.

Os europeus nada dizem. Nem têm qualquer influência excepto junto de alguns países africanos demasiado longe do conflito. A Liga Árabe mantém a sua absoluta inutilidade nos conflitos, sendo certo que a sua prioridade, como a dos europeus e dos próprios americanos, está no Iraque.

Uma aposta mantém-se ainda em pé: a intervenção etíope ser tão rápida e poderosa que obrigue os "senhores da guerra", de lealdades de conveniência, a abandonarem os Tribunais Islâmicos a aproximarem-se do Governo de Transição, e os Tribunais Islâmicos a entrarem em conversações.

Esta teoria é um tiro no escuro, uma forma de tomar desejos por realidades. Basta atentar no passado recente do Iraque e do Afeganistão. As tropas etíopes, contrariamente ao que afirma o PM etíope, estão da Somália condenadas a ficar, a menos que a força de manutenção de paz da UA, a aprovar pelo Conselho de Segurança – que nem a retirada de todas as tropas estrangeiras conseguiu aprovar esta semana – seja encarada e implementada rapidamente num mandato ao abrigo do capítulo VII, que permite um envolvimento activo.

No Conselho de Segurança, o impasse visa apenas dar tempo às tropas etíopes, que apoiam o Governo de Transição, para que consolidem posições. Depois a navegação será à vista. Ninguém tem de fato um plano para a Somália e não vale a pena falar em eleições e democracia, o ditame tão utópico como irrealizável com que o Conselho de Segurança gosta de terminar as suas resoluções.

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