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27 de Maio de 2005 às 17:06

Rábula dos talentos

Mateus, de 25 anos, formado nas melhores escolas de gestão, tinha herdado uma enorme fortuna. Uma fortuna tão grande, que ficava fatigado só de pensar em trabalhar. No entanto, era esperto o suficiente para saber que se não fizesse pela vida, logo aparece

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Havia que encontrar quem trabalhasse por ele?

Assim, chamou aqueles que na opinião do seu falecido tio eram os três mais promissores directores e, confiando-lhe diferentes parcelas dos seus bens, lançou-os num concurso: quem ganhasse seria o futuro gestor das (agora) suas empresas.

Foram então definidas as regras do jogo e os prémios directos (que para dois deles seriam apenas de consolação)?

Ao primeiro disse-lhe que seria avaliado pelas vendas realizadas e que, como prémio por um bom desempenho nesse domínio, receberia um Jaguar E-Type. Ao segundo prometeu-lhe um relógio Cartier Tortue Collection Privée, a troco de um substancial cash flow operacional. Ao terceiro exigiu-lhe o mais difícil: um elevado cash flow livre, como compartida de uma magnífica e rara caneta – uma Aurora Dante Alighieri.

A principal diferença entre os três indicadores de desempenho consistia basicamente no seguinte: o primeiro teria «apenas» que vender; o segundo, para além de vender, teria que ter muito atenção com os custos incorridos; e o terceiro, para além das dificuldades dos dois primeiros, teria ainda que ter cuidado com os investimentos (em instalações, equipamentos ou fundo de maneio) realizados.

O Jaguar, o Cartier e a Aurora eram acima de tudo objectos de culto. Objectos da prestigiosa família do herdeiro que mais pareciam talismãs. Quem os ganhasse ficaria rico – pensava-se. Quem, para além de os ganhar, fizesse melhor que os outros, seria o eleito para a gestão futura dos negócios. Todos os três os queriam; todos queriam ser os primeiros – custasse o que custasse! O diabo iria, por isso, atacar...

O primeiro, o das vendas, rapidamente se enfocou naquilo que tinha que fazer: duplicou o número de vendedores; estabeleceu mais contratos de distribuição e aproveitou para atafulhar os antigos e novos distribuidores com produto que lhes daria para os próximos dois anos; abriu mais lojas, mesmo em sítios de segunda; investiu rios de dinheiro em publicidade; concedeu descontos proibitivos; aumentou a gama de produtos, inovando fortemente; duplicou o valor das existências (para que não houvesse quaisquer problemas de entrega); e concedeu longos prazos de pagamento. As vendas dispararam – com a concorrência atordoada, sem perceber o que se estava a passar. Mas este sucesso não era suficiente.

Embalado pelos elogios que ia recebendo do mercado e pelos pedidos de entrevistas da imprensa económica, este amigo não se fez rogado e deixou-se tentar pelo belzebu: registou vendas com base em facturas emitidas mas não enviadas; facturou clientes fantasma, através de empresas instrumentais (muitas delas falidas); registou vendas que ainda não o eram (sem adjudicações firmes ou com adjudicação sem preço firme, sem contrato ou com cláusulas de rescisão fáceis, etc.); e enviou facturas com quantidades e preços inflacionados (depois, logo se veria como e quando eram devolvidas). Resumindo: aumentou vendas só com papel (facturas não enviadas); ou com papel mas sem clientes (clientes reais); ou com papel e clientes, mas sem um contrato completo; ou com tudo e mais alguma coisa (sendo «este mais alguma coisa» quantidades ou preços inflacionados!).

O segundo director, o do cash flow operacional, já tinha um bocadinho mais de juízo com os custos. Assim, fez parte do que o primeiro fez, mas já não era muito propenso a aumentar custos com vendas (abandonando referências com custos de produção elevados), nem com fornecimentos e serviços externos (como era o caso da publicidade), nem, muito menos, com salários (como era o caso dos vendedores).

Agora no que se referia a abrir lojas e conceder crédito, era um ver se te avias; é que isso era contabilizado como investimento e não como custo – por isso não afectava o cash flow operacional (e pensar eu que houve um conceituado gestor da nossa praça que comprou uma empresa por cerca de 50% mais do que ela valia, só porque o seu bónus estava indexado a este indicador!). Mas o segundo amigo também se havia tornado insaciável. Por isso, deixou-se igualmente tentar pelo satã. Para além de todas as trafulhices acima enunciadas, especializou-se em fazer desaparecer as facturas dos fornecedores (nem que fosse apenas temporariamente) e em registar como activos, aquilo que eram meros custos do exercício (manutenção de edifícios ou equipamentos e despesas com publicidade, entre outros).

O terceiro director, o do cash flow livre, parecia ser o mais atilado. É que para além de se preocupar com as vendas e com os custos, preocupava-se ainda com a magnitude dos investimentos que realizava. Sabia que se estes últimos fossem muito avultados estragaria o ramalhete do cash flow livre, uma vez que este, mais coisa menos coisa, era obtido subtraindo ao cash flow operacional o valor dos investimentos. Assim, pensava duas vezes antes de abrir ou modernizar lojas, comprar novos equipamentos, acumular existências ou dar crédito a clientes. Pensava tanto que quase não investia de todo; e, não o fazendo, iria (a prazo) descapitalizar a imagem da empresa que geria – lojas antigas, equipamentos sujos e sistematicamente avariados, rupturas de stocks e clientes descontentes com as condições de pagamento, constituíam apenas uma pequena amostra daquilo que estaria para vir. Ele pouco se importava, porque depois da Aurora passar para as suas mãos e de ser o primeiro entre os três, teria tempo para compor a situação. Só que até ele se deixou tentar pelo rabudo, utilizando os truques já conhecidos e outros relacionados com a manipulação do valor contabilístico dos activos.

Conclusão: o primeiro estourou logo naquele ano, mas ficou cheio de amigos – sobretudo entre os clientes e os construtores ou vendedores de lojas com quem fizera negócios; o segundo não estourou, mas arranjou muitos problemas com os trabalhadores (por causa dos despedimentos e cortes salariais), que acabariam por lhe fazer a folha – teve, entretanto, várias ofertas de emprego, vindas dos vendedores e construtores de lojas com quem desenvolvera actividades comerciais; o terceiro, também não estourou, mas ficou inutilizado no dia em que uma máquina que já era para ter sido substituída há vários meses lhe caiu em cima do toutiço.

Nenhum destes abusadores foi preso. O primeiro e o segundo foram safos pelos amigos; o terceiro foi considerado inimputável.

Mateus era, de facto, esperto. Soube como testar a confiança dos seus servos, sem periclitar a posse dos talismãs. Além disso, o património que havia colocado à disposição dos três (praticamente todo financiado pelos bancos, sem garantias pessoais), representava (em termos líquidos) menos de 1% da sua fortuna. O resto Mateus investira na Berkshire...

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