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O Falsário VI | opin 29 de Julho de 2005 às 13:59

Os três passadores

Esta é a história dos três passadores. Prático vivia numa casa de tijolos, na cidade, e passava muitos cheques falsos com a sua Hervé Obligi lapis-lazuli. Era um passador de cheques, portanto. Heitor vivia numa casa de madeira, junto à praia, e passava os

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Cícero vivia escondido no meio do mato, habitando uma casa de palha. Cícero falsificava notas e, a seguir, distribuía-as. Era um passador de notas, lá está.

Prático fizera fortuna a fabricar e a descontar os seus próprios cheques. Era um «negócio» de família. O charme da cuidadosa escolha do papel, tinha dado lugar à selecção das tintas magnéticas (que faziam com que as máquinas nos Bancos não começassem todas a apitar!), mas a tradição continuava intacta.

Prático considerava, no entanto, que as medidas de segurança contra a fraude eram cada vez mais sofisticadas e, por isso, resolveu inovar: pararia com o fabrico e dedicar-se-ia apenas à utilização de cheques verdadeiros. Mas com dizeres falsos, pá...

Aliciou uns amigalhaços que trabalhavam em empresas e convenceu-os a serem seus fornecedores de «matéria-prima». O que é que eles forneciam? Cheques.

Ao princípio começaram por desviar apenas cheques assinados em branco. Cedo verificaram, contudo, que os estúpidos que faziam tal coisa eram cada vez mais raros.

Numa segunda fase, foi-lhes pedido para abordar outro género de estupidez: os carimbos de assinaturas e as assinaturas digitalizadas, acompanhados de livros de cheques mal guardados. Esta actividade já se revelou mais profícua.

Mas era preciso mais. Era preciso que os estafetas desviassem algumas das entregas de cheques e que estes pudessem ser corrigidos, já depois de passados, apagando (com químicos especiais) e rescrevendo quantias e beneficiários; ou apenas falsificando endossos (imitando a assinatura do beneficiário).

Depois, veio a fase mais gira: a da tinta que se apagava. O pessoal «de confiança» que trabalhava lá nas empresas arranjava maneira de espalhar pelo escritório canetas com tinta que se apagava com simples borrachas, não deixando marcas. Apagava-se tudo menos a assinatura do legítimo sacador e voltava a colocar-se a quantia e o beneficiário.

Prático falsificava agora em «segurança».

Era preciso que o sistema de desconto dos cheques também gozasse dessa prerrogativa. Quem quer segurança vai ao Banco. Foi isso que Prático pensou e, logo, fez.

Tudo se baseava em contas abertas em nome de empresas só constituídas para o efeito; o recurso a documentos de identificação falsos; a indicação de um apartado como morada para correspondência e de um telemóvel pré-pago para contacto; e a utilização intensiva de ATM.

A empresa fornecia a fundamentação para os repetidos cheques (falsos, naturalmente) depositados; a identificação falsa e o apartado apagavam quaisquer traços de personalidade; o telemóvel seria utilizado pelo bancário sempre que ocorresse um incidente com os depósitos forjados (permitindo a Prático pôr-se a milhas do Banco, e da respectiva cidade, sempre que o tal funcionário lhe reportasse um «problemazinho»); e, finalmente, a ATM servia para ir confirmando se os tais cheques fingidos já se tinham transformado em dinheiro na conta (ou não, indicando uma potencial detecção de falcatrua por parte do Banco).

Naturalmente, o bicho fingidor usava sempre Araldite nos dedos, para apagar traços de impressões digitais nos cheques falsificados e nos cartões que utilizava nas ATM, tendo ainda especial cuidado com câmaras de vigilância.
Prático era um espertalhaço!

Heitor já não era tanto...

Heitor tinha adquirido um equipamento para fabricação dos seus próprios cartões de crédito. Foi à Net e encontrou o equipamento, pá...

O material produzido era de primeiríssima qualidade: cartões com rebordos bem lisos, não esquecendo as letras microscópicas em torno do símbolo do emissor do cartão, o «V» voador e a fiel réplica das duas cores no sítio das assinaturas.

As bandas magnéticas é que nem sempre se conseguiam arranjar. Mas isso também não era preciso. Antes pelo contrário. Bom mesmo era o comerciante passar o cartão na máquina electrónica e, vendo que o mesmo não funcionava, voltar a passá-lo na manual. Assim demorava mais tempo a perceber-se que alguém tinha ficado a arder com a massa.

Heitor até já tinha comprado um Lamborghini Miura e tudo. Mas não era muito esperto: então para que é que ele se dava ao trabalho de andar com o plástico atrás, se o que interessava verdadeiramente eram os números dos cartões? Até havia tipos que vendiam resmas daquilo ao preço da chuva, para depois utilizar na Net.

Não era muito esperto o Heitor.

Mas Cícero ainda era menos. Muito menos.

Aliás, Cícero era burro todos os dias!

Tinha a mania que era banqueiro. Usava até um fabuloso Franck Müller Master Banker (gamado!). Mas não era o relógio que fazia dele um tipo astuto.

Era burro todos os dias.

Primeira burrice: dedicar-se à falsificação de notas. Julgava que as fotocopiadoras modernas conseguiriam fazer o trabalho na perfeição; mas a coisa só funcionava com os tipos das lojas que eram tão burros como ele. Então ele não via aquelas bandas que pareciam quase metal nas notas de euros? Como é que uma fotocopiadora imita aquilo, pá?

Segunda burrice: ter que fazer resmas de notas, para conseguir receber uma ninharia no final do dia. Enquanto grossista recebia apenas 12% do valor facial (os distribuidores de 2º nível e os passadores de rua recebiam 25% e 35%, respectivamente). Ora, para receber doze mil euros (coisa que um cheque bem passado por Prático resolveria de uma assentada só!), teria que passar cem mil euros em notas. Vamos imaginar que metade, cinquenta mil euros, seria em notas de 10 e a outra metade em notas de 20 (quanto menores as quantias, maior a circulação). Estamos a falar de 5000 notas de 10 e 2500 notas de 20. É muita nota, pá!

Terceira burrice: ter falsificado e posto a circular notas de escudos, já depois da entrada em vigor do euro (esta era a brincar...).

Quarta burrice: confiar em tipos mais espertos do que ele. Uma vez uns finórios convenceram-no que tinham descoberto um sistema que transformava, por pressão, papel branco em notas verdadeiras, em apenas 24 horas. Feita a demonstração de que o sistema funcionava (naturalmente utilizando apenas notas verdadeiras, comprimidas contra notas verdadeiras), depressa o convenceram a levantar da sua conta 100 notas de cinquenta (verdadeiras) e a montar um estendal de notas comprimidas num quarto de hotel ali perto. Depois, foi apenas necessário convidá-lo para beber uns copos, enquanto esperavam (afinal, a operação de «osmose» demoraria 24 horas), e levaram-lhe as cem notas verdadeiras!

Quinta burrice: confiar pela segunda vez em tipos mais espertos do que ele. Um dia venderam-lhe uma máquina que lhe disseram transformar papel em branco em perfeitas notas de cinquenta euros. Começaram por lhe fazer a tradicional demonstração, depois de previamente introduzirem uma nota de cinquenta euros verdadeira na tal máquina. A demonstração consistiu em introduzir um papel em branco na máquina e em retirar, passadas doze horas, a tal nota (verdadeira) previamente colocada noutro compartimento. O truque estava na espera das doze horas que se dizia necessárias para produzir a «genuína»: tempo suficientemente pequeno para que Cícero concluísse que poderia fazer mais de setecentas notas de 50 absolutamente perfeitas por ano (35 mil euros de notas, quando a máquina apenas lhe custara 25 mil); mas suficientemente grande para que o vendedor da máquina se pusesse a milhas, depois de Cícero constatar que da segunda vez (sem a nota verdadeira previamente colocada pelo vendedor) a máquina já não funcionara.

Sexta burrice: confiar pela terceira vez em tipos mais espertos do que ele. Um dia alguém vendeu-lhe várias embalagens de notas falsas pelos tais 12% que ele costumava receber pela operação inversa. Naquele caso foi ele que comprou mais de dez mil notas falsas de 10 pela módica quantia de doze mil euros. Doze mil euros por algumas notas de 10 e muito papel em branco para fazer volume!

Burrice de Sábado: tentar enganar tipos mais espertos do que ele. Um dia, meteu um maço de notas falsas dentro de uma carteira, e, colocando-a previamente em certo lugar, simulou encontrá-la mesmo à frente de um transeunte. Ao dizer ao outro que lhe daria a carteira a troco de uma pequena quantia, acabou por levar uma tareia. O outro conhecia o truque...

Esta é a história dos três passadores.

Quem tem medo do lobo mau?

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