Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
O Falsário VI 05 de Agosto de 2005 às 13:59

Jogos de perder

Certo dia, um pai preocupado com o futuro dos filhos, num país regido por regras meio esquisitas, resolve dar-lhes a lição das suas vidas: a uma, Isabel, explicaria o valor da informação, a outro, Abel, a importância dos amigos e ao terceiro, Serafim, ens

  • ...

Informação, Amigos e Sorte, a receita de um pai para os seus filhos. Método escolhido para a acção de formação? Os jogos – que o pai, dedicado, conhecia bem.

Isabel foi a primeira a ter o seu «curso»...

«Isabel, vamos fazer um jogo: contamos o dinheiro que temos nas nossas carteiras e quem tiver mais ganha o dinheiro do outro». Isabel, boa aluna a matemática, e que até julgava que o pai só usava cartões e cheques, aceitou o desafio. De facto, a esperança de ganho – ficar com o dinheiro do pai, caso tivesse mais dinheiro na carteira – seria sempre superior à de perda – ficar sem o seu dinheiro, caso a sua carteira tivesse menos dinheiro que a do pai. O pai pensava exactamente o mesmo. Como ambos pensavam exactamente o mesmo, o jogo parecia equilibrado. Só que não era...

O pai explicou a Isabel, que ela perderia o jogo de certeza, porque ele tinha preparado a sua carteira, forrando-a de notas. Ele, que propôs o jogo, detinha esta informação; ela não.

De seguida, o pai convidou Isabel para sair. Como era fim-de-semana, pegou no Renault Alpine A110 azul e dirigiu-se com a sua filha para uma zona onde sabia existir o jogo das três conchas. O jogo consistia em adivinhar sob que concha se encontrava uma ervilha, baseando a sua dificuldade na rápida manipulação das conchas por parte de um malabarista.

Isabel viu sob que concha foi (supostamente) colocada a ervilha. Depois seguiu atentamente os movimentos do malabarista e apontou a concha que julgava albergar o legume. Enganou-se. Enganou-se, repetidas vezes. Depois, o malabarista até decidiu facilitar-lhe a vida. Aceitou virar uma concha vazia, depois de as manipular, facilitando-lhe a escolha. Isabel, concluiu que as probabilidades de acertar seriam agora de 1/2 e não de 1/3, como se verificara anteriormente. Errou. A probabilidade não se tinha alterado. Não se tinha alterado porque, explicou-lhe o pai, a ervilha era sempre retirada do jogo entre dois dedos habilidosos. Ou seja, todas as três conchas estavam sempre vazias no momento da escolha e o malabarista conhecia antecipadamente essa informação (Isabel, não).

Isabel aprendeu a lição: no jogo da vida, ganha quem tiver informação relevante que o seu adversário não possui.

Depois, foi a vez de Abel.

Abel iria aprender a importância dos amigos, da cumplicidade.

Foram a um café, onde encontraram um amigo do pai, por «acaso» (o pai sabia que não tinha sido por acaso...). Conversa puxa conversa e lá começaram a jogar um jogo de moedas. Cada um dos três, rodando a vez, escolhia par ou impar, podendo levar na mão uma ou nenhuma moeda.  Sempre que o somatório das moedas desse par (zero era considerado par), o único que tivesse escolhido par (se tal se verificasse) recebia dos outros dois; o mesmo acontecendo com a escolha de um ímpar. Numa jogada em que nenhum ganhasse, o dinheiro de todos acumulava para a jogada seguinte.

Começaram a jogar e, às tantas, o amigo do pai foi ao WC. O pai combinou então com Abel uma forma de ambos nunca perderem: sempre que um dos dois escolhesse par, o outro escolheria ímpar. Quando o amigo voltou, continuaram a jogar e assim sucedeu: o pai e o filho ou ganhavam ou nunca perdiam. Só que o pai também ia depenando o filho (já que o amigo do pai, sempre que podia e nas apostas em que havia mais dinheiro envolvido, escolhia sempre o que o Abel escolhia – impedindo assim que Abel fosse o único a escolher par ou ímpar). O filho, apesar de raramente ganhar (só para disfarçar é que deixavam que tal acontecesse), lá continuava todo contente, pois sabia que iria partilhar os ganhos do pai.

Só no final do jogo, o pai explicou ao filho que, numa situação real, os ganhos afinal seriam partilhados com o amigo, que era, para efeitos de demonstração da «teoria da amizade» o seu verdadeiro cúmplice naquele jogo.

Seguiram, depois, para uma rua que o pai conhecia bem (e Isabel também). Pararam junto a uma banca de Vermelhinha. Este jogo, parecido com o das três conchas que Isabel aprendera, consistia em escolher uma dama com um naipe vermelho (daí o nome Vermelhinha), entre duas outras cartas de naipe preto. O malabarista mostrava previamente onde estava a dama e, depois de manipular as cartas com grande velocidade, convidava a vítima a tentar descobri-la.

O pai, que conhecia o malabarista de outros campeonatos e havia tido uma conversa específica com ele sobre a sua intenção de dar uma lição ao filho, foi o primeiro a jogar, ganhando em três das cinco vezes que apostou. Depois, incitou Abel a fazer o mesmo, prometendo-lhe que lhe daria o seu relógio, um Tag Heuer Monaco, se ele acertasse na primeira jogada. Antes, já havia chamado a atenção do filho, para o facto da dama estar marcada com uma pequena dobra num dos cantos.

O filho lá começou a jogar, tendo escolhido de imediato a carta marcada. Só que a carta marcada era afinal um ás de espadas! Como é que tal podia ter acontecido?

Depois de o deixar perder várias vezes, o pai explicou ao filho que naquele jogo era quase impossível alguém ganhar, já que havia muitos truques que o malabarista podia fazer, incluindo, naturalmente, o truque de, disfarçadamente, desmarcar o canto da dama, para marcar o de uma outra das duas cartas de naipe preto. O pai havia sido cúmplice do malabarista (e não, naturalmente, do filho, quando lhe deu a dica sobre a marca).

Abel aprendeu a lição: no jogo da vida, ganha quem tiver, amigos, cúmplices, que nem sempre é fácil descobrir quem são.

Finalmente, foi a vez de Serafim.

Desta feita, o pai começou por fazer um simples jogo de bisca dos nove com o filho. Com uma particularidade: as cartas que o pai utilizou no jogo eram marcadas. Com efeito as figuras que ostentavam no verso, pareciam todas iguais, mas tinham particularidades (pintas e outros sinais), que permitiam ao pai «adivinhar» o jogo que o filho tinha na mão. O mais velho ganhou praticamente todos os jogos, apenas lhe explicando no fim o que acontecera relativamente à batota do baralho viciado.

Seguidamente, o pai levou Serafim à feira e, depois de jogarem nas máquinas dos bonecos que se pescam e das moedas que são empurradas por um «bulldozer» para o abismo (as que caírem vão-se recebendo) e depois de treinarem a pontaria com bolas (a garrafas empilhadas), com argolas (a pinos) e com setas (a balões), o pai explicou os truques que dão mais sorte ao feirante...

Os bonecos ou são mais pesados que a grua ou têm velcro que os agarram ao chão; as placas que empurram as moedas são construídas por forma a minimizar a queda destas no buraco que permite ao jogador recebê-las (por exemplo através de rebordos altos); as garrafas são constituídas por três do género «sempre em pé», que, mesmo que caiam, não rolam para fora da bancada (condição necessária para ganhar) – a não ser que, como no jogo de demonstração feito pelo feirante, as garrafas com truque sejam as que são empilhadas sobre as três da base; as argolas são mais estreitas que os pinos («engordados» com materiais transparentes); e as setas têm as pontas arredondadas, sendo lançadas contra balões pouco cheios.

Serafim aprendeu a lição: no jogo da vida, ganha quem fizer pela sorte, aumentando as probabilidades de ganhar. Tomou nota disso com a sua Omas Las Vegas, para nunca mais se esquecer.

Isabel, Abel e Serafim nunca mais esqueceram, de facto. Até nos seus hobbies: concursos televisivos para a primeira, futebol para o segundo e maratonas para o terceiro. Aliás, o último, certo dia de 1980, apercebeu-se perfeitamente que a senhora que cruzou a meta em primeiro lugar na maratona de Boston, não tinha aparecido na corrida senão a poucos metros da linha de chegada...

Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio