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O Falsario II | opin 01 de Julho de 2005 às 13:59

O talentoso Sr. Tomás

Tomás sempre revelara um enorme jeito para a pintura. Pintava com o coração, passando para a tela os seus sentimentos. Usava e abusava das cores vivas, criando uma tensão insuportável entre o vermelho, o amarelo, o verde... e o preto. As telas pareciam de

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O amarelo, muito usado, ora se declinava em tonalidades bronzeadas associadas à força dos cavalos, ora se enchia de luminosidade envolvendo um jarro de girassóis. A realidade acinzentada do rio Tamisa era rapidamente transformada numa combinação de tons que fazia lembrar o arco-íris. As papoilas vermelhas quase se podiam cheirar, arrastando o aroma bucólico dos pacotes de sementes e da Primavera. Os recortes demasiado pormenorizados da realidade eram substituídos por pinceladas vigorosas em que as copas das árvores podiam ser cor-de-rosa e o desenho de uma toalha de mesa misturar-se, sem fronteiras, com o das paredes. As mulheres, essas, eram retratadas em todo o seu esplendor, reflectindo a beleza e a alma (como já dissemos) e exprimindo inequivocamente a sua sensualidade, associada ao exotismo das modelos, às pinceladas fibrosas ou aos olhos rasgados que ladeavam bocas intensamente vermelhas.

Só havia um problema: Tomás gostava mais de imitar os grandes pintores do que confrontar-se com uma tela em branco. E isso era um problema? Era, porque Tomás vendia os quadros copiados como se fossem originais!

Filho de família abastada, não precisou de amealhar durante muito tempo para conseguir adquirir quadros dos autores consagrados que melhor igualavam o seu olhar sobre a pintura. Depois, ou não tivesse obtido a mais alta classificação de sempre da escola de belas artes que frequentou, começou a reproduzir essas pinturas e a vendê-las. Fazia imitações tão perfeitas que até conseguia revender os quadros falsos como verdadeiros a quem antes lhos havia vendido a si! Naturalmente, não descurava qualquer pormenor, com os materiais utilizados a respeitar fielmente as épocas originais, resistindo a qualquer inspecção por raios ultravioleta.

Tinha também o cuidado de distribuir o seu comércio por várias regiões - por forma a que os felizes possuidores de «originais» iguais não se cruzassem numa qualquer festa social - e de fazer acompanhar as obras primas de certificados de autenticidade, primorosamente falsificados (nada como uma falsificação para dar autenticidade a outra falsificação).

Aos 34 anos, Tomás ostentava um Parmigiani Fleurier Toric Turbilhão, em platina, e não assinava um documento que fosse sem ser com a sua Recife Andy Warhol Mona Lisa – uma espécie de homenagem ao Renascimento, época de culto dos direitos de autor, com uma pitada de arte Pop.

Com essa idade, comprou uma magnífica casa em Veneza: porta principal mesmo em frente a um canal; enorme pé direito; chão e paredes em pedra ao estilo barroco do século XVII; janelas recuadas; cristais, tapetes e mobília que nos transportavam para a vida faustosa dos palácios; e, claro está, quadros.
Tomás era um Senhor...

Não era raro vê-lo passar tardes e serões extraindo fantásticas melodias do seu piano - um magnífico R. Lipp & Sohn. Embalava-se, assim, num mundo pleno de arte, completamente aberto aos sentidos e a uma vida amorosa que sustentava de forma menos fiel do que a vivida com os seus objectos de culto.

Em Veneza montou também uma espécie de indústria onde trabalhavam (qual linha de montagem) um conjunto de alunos das melhores escolas (também eles movidos pelo cheiro do dinheiro), especializados na pintura de um de vários componentes que integravam a mesma composição: as nuvens, ou as árvores, ou as casas...

De quando em vez, regressava a Lisboa, onde se deslocava num Alfa Romeu Spider, vermelho, que o mantinha ligado ao mesmo romantismo e à mesma luz com que imitava essas preciosidades do Expressio-nismo e do Fauvismo.

Foi numa dessas viagens, a caminho de Cascais, que, em diálogo interior, tomou a decisão de dar um novo rumo à sua carreira. O dinheiro já não era tudo para quem tão cedo havia conhecido fortuna. Agora queria sentir a vertigem do inalcançável: vender «originais» dos melhores museus do mundo!

Tate Gallery, em Londres; Ny Carlsberg Glyptotek, em Copenhaga; Wilhelm-Lehmbruck-Museum, em Duisburgo; Hamburger Kunsthalle, em Hamburgo; Staatsgalerie, em Estugarda; Museu do Ermitage, em São Petersburgo; Nasjonalgalleriet, em Oslo; The Leonard Hutton Galleries, em Nova Iorque; e Národní Galerie, em Praga; eram os museus que Tomás havia escolhido para dar início à ambiciosa missão.

De regresso a Itália, explorando uma zona habitualmente frequentada pelo bas-fond do mercado da arte, e por indicação de um amigo comum, Tomás encontrou o indivíduo com o perfil certo para ser seu sócio nesta nova aventura que comportava também um novo risco – o roubo. Chamava-se João e tinha-se especializado no roubo de peças de arte: assaltava ourivesarias, galerias e casas particulares, em busca de tudo o que fosse de valor incalculável. Nunca tinha assaltado museus. Mas a ideia fascinava-o...

Num certo dia 22 de Agosto, a actividade teve início (e fim!): João roubou um dos mais valiosos quadros do mundo, através de assalto à mão armada.

No requinte renascentista da sua casa de Veneza, Tomás pouco se importava que o seu sócio tivesse sido «queimado» pelas câmaras de vigilância logo na primeira grande operação – que estupidez aquela de retirar a mascara durante um suposto ataque de asma que afinal não o era... Dissera-lhe, no entanto, que se acalmasse, porque seria pouco provável que alguém o descobrisse naquele refúgio da Sicília que se preparava para recebê-lo. O pagamento foi feito em notas e a partida foi preparada para daí a uns dias.

Tomás olhava completamente deslumbrado para a alma projectada em torno da sensual criatura e para a auréola vermelha que parecia envolver os seus cabelos negros. Sabia que era uma imprudência ter trazido o quadro para a sua casa de Veneza. Mas era ali mesmo que o queria reproduzir; ou, melhor dito, falsificar.

Passados uns meses, Tomás e João (ou seria alguém muito parecido?) encontraram-se durante uma Ópera em Milão. Por detrás do barulho ensurdecedor das palmas encomendadas - o correspondente a duas aparições após o correr do pano -, o primeiro questionou o segundo sobre a razão de ser de tamanha imprudência, agora que a operação plástica tinha sido marcada. O segundo, não entendia do que falava o primeiro, até que Tomás percebeu que não era João que estava ali, mas alguém que denotava parecenças impressionantes...

Não tardou muito para que Tomás denunciasse o desconhecido ali mesmo durante a Ópera, entregando-o às autoridades como se de João se tratasse. Talvez eles nunca conseguissem recuperar o quadro roubado do museu (o pobre coitado, por muito torturado que fosse, nunca iria saber do seu paradeiro); mas quem é que ía querer saber de alibis, se podiam vender como verdadeira uma captura que só Tomás sabia não ser original (falsificação de capturados, portanto!)?

Quanto ao original, Tomás, concretizando uma linha de pensamento que até já o vinha atormentando, deu ordens para o matarem. Assim, em vez de ter que entrar com o dinheiro de uma plástica, como combinado, apagaria todos os traços que o ligavam ao famoso roubo e ainda recuperaria algum do dinheiro pago pela execução do golpe de subtracção. Evitaria também vir a ser chantageado, quando o dinheiro de João se esgotasse.

Nos tempos que se seguiram, Tomás continuou a espalhar pelo Mundo «originais» do quadro que já lhe rendera mais do que alguma vez supusera possuir.

Madonna! – como era belo aquele quadro...

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