Opinião
A Identidade do Vadio Anónimo
São 10h da noite. Rui termina o relatório que tem de entregar no dia seguinte e vai para casa. À saída da garagem faz um sinal com a mão ao vigilante de serviço e arranca com velocidade, depois de levantada a cancela. Ao longe, percebe-se a sequência dese
Rui chega à entrada da sua garagem poucos minutos depois. Entra, esperando que o portão automático se feche atrás de si e estaciona o carro. Sobe no elevador, abre a porta de casa e põe-se à vontade. Enquanto se recosta no sofá, Rui analisa a correspondência, descobrindo um envelope contendo um cartão de crédito, pronto a utilizar, que não pediu. «Se fosse há dez anos atrás, quando não tinha cheta, estes tipos não me mandavam isto» – pensa, enquanto se levanta para deitar o cartão na conduta do lixo, juntamente com os envelopes vazios e publicidade impingida.
Não muito longe dali, Rogério verifica que já expirou o prazo de validade do seu cartão de crédito e, deitando-o no lixo, pergunta-se porque raio o Banco ainda não lhe enviou o novo. «Amanhã de manhã tenho de verificar a caixa de correio» – conclui, pensando ainda que já não a abre há três dias.
Dezenas de metros mais abaixo, António, vadio anónimo (mas não de nome), olha para o interior negligentemente exposto da bolsa de uma jovem que agarra descontraida o varão da carruagem onde circula. Em segundos, a carteira está nas mãos de António, que sai na paragem seguinte.
De regresso a casa, Afonso confirma as horas no seu Breitling Old Navitimer 50th – são 10h10m. «Tenho de me despachar, estão todos à minha espera para jantar» – sugere a si próprio. Quando se detém num sinal vermelho, vê António a sair do Metro e a atravessar a rua mesmo à sua frente, ficando espantado com as semelhanças físicas consigo próprio. «Será um sinal dos deuses?» – interroga-se. «Será que me querem dizer que eu próprio poderia ser aquele?» – pergunta-se, de novo, enquanto vê António entrar num portão de ferro e desaparecer. Com a sua Lamy Persona, Afonso aponta o número daquela entrada e arranca circunspecto.
António aproxima-se de um Bugatti Type 35 abandonado na garagem onde o deixam habitar a troco de alguns serviços de limpeza. Deposita aí dentro a carteira roubada e volta para a rua, puxando um velho carrinho de compras.
Com as mãos nos bolsos e postura curvada, António vai pontapeando as caricas e maços de tabaco que lhe aparecem pela frente, até que pára em frente a uma porta – no prédio de Rui - que abre com um pequeno empurrão. Já do lado de dentro, mergulha no contentor do lixo e retira cuidadosamente tudo o que não é orgânico. Depois, segue viagem com o seu carrinho.
Mais à frente, nova paragem. Desta feita é a porta de um prédio mal fechada que atrai a sua atenção – é o prédio onde mora Rogério. Apesar de ainda não ser muito tarde, o vadio arrisca a entrada e retira rapidamente o conteúdo das caixas de correio cujas portas cedem com grande facilidade.
António só termina a sua volta nocturna à meia-noite, hora a que se recolhe na sua garagem e descansa dentro de um confortável, mas porco, saco-cama.
A essa hora a cabeça de Afonso ainda anda às voltas. Não lhe sai da cabeça aquela imagem de si mesmo a atravessar a rua. Acaba, contudo, por adormecer, passando a noite entre as dez e as onze.
António acorda perto das 8h com o barulho dos portões a abrir. É saudado pelos mecânicos que irão começar a sua jornada de trabalho. O vadio arruma as suas tralhas e dirige-se a um café próximo, onde, ainda com pouco movimento, lhe oferecem uma meia de leite fumegante e um pão com manteiga. À saída, um sujeito alto, com óculos escuros, espera-o: «então, como é que foi a noite ontem?» António responde-lhe que não teve tempo para ver o carregamento. «Então despacha-te; passo aqui antes das 10h para vir buscar as coisas» – exclama o tipo dos óculos.
António dirige-se à garagem, onde apanha o saco das compras e volta a sair. «Esteve aqui um tipo à tua procura; parece um gajo endinheirado» – diz um dos mecânicos. «Já sei, cruzei-me com ele agora» – responde o vadio. «Mas olha que não é do estilo desses meninos que costumam vir aqui à tua procura; é um tipo com boa pinta» – insiste o mecânico. António sai sem mais delongas.
Às 10h em ponto, uma pequena pilha de cartões de crédito passa para as mãos do tipo dos óculos, a troco de cinco euros - o destino dos plásticos será mais do que evidente, não devendo tardar muito para que Rui, Rogério e a linda menina do Metro vejam as suas contas bancárias debitadas por coisas que não compraram (talvez a última se safe?).
É mais ou menos nesse instante que Afonso aborda António, depois de o descobrir através das indicações do mecânico da garagem. Afonso fica ainda mais perturbado à medida que se aproxima, dando a entender ao outro pobre coitado que ele só pode ser a sua alma gémea.
Após uma curta e convincente conversa, Afonso encaminha-se para sua casa com o vadio a seu lado e todas as tralhas deste no porta-bagagens.
«Quero que tratem deste homem; que o ponham como novo» – exclama para um dos seus empregados. «Levem-no para os aposentos das visitas e deixem-no tomar um bom banho de imersão, enquanto lhe vão comprar roupas novas; mais tarde, ele almoçará comigo.»
António não digere logo a situação, mas deixa-se levar pelos acontecimentos. Afinal, o que tem a perder?
Nas semanas que se seguem, Afonso vem a descobrir que o agora ex-vadio já foi alguém na vida e que um desgosto de amor, provocado por uma safada, o conduziu ao rumo da perdição. António tem um B.I., uma carta de condução e até um cartão de contribuinte e outro da Segurança Social (esses ele não entregara às máfias que o exploravam). Interessante descoberta!...
Passada a fase lamechas e de novidade, de ajuda à alma gémea, Afonso, homem de negócios, começou então a explorar o seu «activo». Primeiro foi a utilização do seu nome para identificar o condutor que circulava a mais de 200 à hora dentro da cidade – o desgraçado do António ficou com o registo de uma infracção muito grave, mesmo sem ter saído de casa. Depois, seguiram-se aquelas análises para efeitos de um seguro de vida de Afonso, em que António foi convidado a urinar logo pela manhã para um frasquinho, sem perceber muito bem porquê. Já antes, quando haviam feito um check up total ao vadio, para ver se ele não tinha nenhum problema se saúde, tinham verificado que o homem, apesar de pobre, tinha uma saúde de ferro – coisa que Afonso, mais dado aos prazeres da vida, que incluiam algum consumo de drogas, cada vez tinha menos.
Mas a grande descoberta veio no dia em que um amigo de Afonso lhe sugeriu uma trama para fugir ao IVA. Bastava que ele arranjasse uma empresa em nome de outro e que a colocasse no circuito a montante das empresas de Afonso. Depois, bastaria não entregar ao Fisco o IVA retido e o sócio-gerente dessa empresa que se desenrascasse.
Passado uns meses, António, agora empresário e sócio-gerente, tomou conhecimento de um mega-processo instaurado contra si. Acusavam-no de reter, por abuso de confiança, somas que deveriam ter sido entregues ao Estado - arriscava-se a ir parar à prisão. Afonso dizia-lhe para não ligar, que tudo se resolveria.
António podia ter sido vadio, mas não era parvo. Consciencializou-se, pela primeira vez, que a ajuda de Afonso se viera a transformar numa utilização hedionda da sua personalidade jurídica. Era a segunda vez na sua vida que alguém o esmagava e rodava o pé, como quem apaga uma beata.
Na noite em que Afonso se preparava para rumar ao Brasil (avizinhando confusão), facto que todos conheciam, António entra em casa deste e, aproveitando um momento a sós, desfere-lhe um golpe mortal na cabeça com um busto de Napoleão que ornamentava a lareira. A morte do rico foi imediata. António transportou-o depois para os aposentos das visitas e incendiou-os (não o fazendo sem antes verificar a existência de documentos nas roupas de Afonso).
Nesse dia, nascia um novo Afonso e morria, irreconhecível, um desgraçado António. No dia seguinte nascia uma nova vida para António – que agora se chama Afonso e não tardará a comunicar a perda dos «seus» documentos, para conseguir a lavagem total dos mesmos (com uma foto sua e tudo).
Depois, será ele que rumará ao Brasil.