Opinião
África mina
A bordo do seu Maserati 3500 GT, José reflectia sobre as dificuldades que o esperavam naquela semana. Uma semana absolutamente decisiva para a concretização de alguns contratos que, uma vez assinados, garantiriam os objectivos do semestre. O seu Daniel Je
Iria chegar ligeiramente atrasado para a sua terceira reunião da manhã. Talvez por isso não tivesse sequer aberto o vidro quando abordado por um pedinte, no último semáforo duma das avenidas que o conduziam ao escritório. Talvez por isso, ou por julgar que aqueles pedintes não eram verdadeiros pobres, mas antes piões de uma vasta rede que sacava dinheiro aos mais desprevenidos.
Quando entrou no seu gabinete, a correspondência já se encontrava cuidadosamente separada em cima da sua secretária. Uma carta chamou-o a atenção?
«Cordiais saudações. O meu nome é Nazek Hariri e cheguei ao seu conhecimento através de um amigo comum, que fez questão de manter o anonimato por razões que oportunamente lhe explicarei. Desde já, peço desculpa por invadir a sua privacidade. Não foi fácil tomar a decisão de me dirigir a alguém que não conheço pessoalmente e abrir o meu coração para lhe expor um assunto da máxima confidencialidade. Fi-lo, no entanto, em consciência, depois de me aconselhar junto dos meus filhos e do nosso advogado e ter concluído que esta seria, no momento actual, a única forma de resolver com vantagem um assunto que reputo de elevado interesse económico. Fi-lo, ainda, porque as referências que recolhi a seu respeito não me deixam qualquer dúvida sobre a sua elevada idoneidade e sentido altruísta.
Passarei, assim, a expor o meu assunto.
A minha família vive exilada neste maravilhoso país africano, desde 1974. Nessa altura iniciámos uma nova vida, tendo o meu marido trocado a sua carreira política pela de homem de negócios. Durante todos estes anos, e apesar da vida maravilhosa que levámos, não houve um único dia em que não pensasse no regresso ao meu querido país. O meu marido estava, no entanto, demasiado envolvido nas suas múltiplas viagens, para que considerasse um regresso. Dizia-se um cidadão do mundo. Talvez do mundo africano. E foi esse mundo que, de forma trágica, lhe retirou a vida. Tomei conhecimento do seu desaparecimento quando, há um mês atrás, o nosso advogado me procurou e me transmitiu a triste e inesperada notícia. Na altura, fiquei em estado de choque, sem saber o que fazer. Só mais tarde, há cerca de uma semana, fui voltando à realidade, adaptando-me a uma nova forma de viver, com a ajuda dos meus queridos filhos.
Foi, igualmente, há uma semana que tomei conhecimento de que o meu marido havia feito uma fortuna colossal: a sua herança era de cerca de 50 milhões de dólares; mais do que alguma vez conseguiremos gastar. Foi então que, em conjunto com os meus filhos, tomámos a decisão de regressar ao nosso país. Expus a ideia ao nosso advogado e pedi-lhe ajuda na concretização desse plano. Pela sua expressão, percebi que haveria algum problema. E de facto havia: a nossa nacionalidade actual, associada às actividades do meu marido, que, vim a descobrir, afinal se relacionavam com o financiamento de partidos políticos, aconselhavam a manutenção do anonimato por mais algum tempo. Explicou-me, depois, que os 50 milhões de dólares deveriam ser transferidos com urgência para uma conta em nome de um terceiro e aí permanecer «até que a poeira assentasse», como ele próprio afirmou.
É neste contexto que me dirijo a si.
Queria pedir-lhe que abrisse uma conta em seu nome, para onde eu pudesse transferir toda a herança deixada pelo meu marido.
Compreenderá agora claramente, porque é que a sua elevada idoneidade é tão importante para mim. Sei que nunca se iria aproveitar da confiança que em si depositei. Não quero, contudo, que este pedido seja entendido como um favor feito a uns pobres coitados. Sei que não somos uns pobres coitados. Sei, também, que V. Exa. é um homem de negócios. Por isso, estamos dispostos a oferecer-lhe cerca de 20% do valor a transferir para a sua conta – cerca de 10 milhões de dólares, portanto.
Caso esteja interessado neste assunto, agradeço-lhe que me envie um e-mail para nazek.hariri@coldmail.com. Caso o faça, o meu advogado contactá-lo-á (para o telefone que indicar) para lhe explicar os detalhes sobre o modo de fazer a transacção...»
«E depois de alguns telefonemas e faxes trocados, pedem-te para mandar 50 mil dólares como adiantamento para pagamento das despesas de transferência e não sei mais o quê, dizendo que essa quantia corresponde apenas a 0,5% daquilo que irás receber e que poderás descontar imediatamente esse dinheiro, assim que receberes os tais 50 milhões na tua conta. Como é que há estúpidos que ainda caiem neste conto do vigário, mais velho que o...» - murmurou José, enquanto abanava a cabeça e voltava às suas lides...
Eram já 14h30m quando José desceu para ir comer qualquer coisa rápida. No momento em que se preparava para entrar numa conhecida pastelaria, para comer uma sopa e uma sandes, foi abordado por uma lindíssima mulher de raça negra que, mostrando-lhe um documento, lhe perguntou se sabia onde se situava aquele escritório de advogados. Continuando a dirigir-se para o balcão, José agarrou no papel e, de forma educada, disse não conhecer aquela sociedade. A mulher explicou-lhe, então, que era imigrante não legalizada e que tinha um prémio de lotaria para receber, mas que tinha receio que lhe pedissem uma identificação (que não tinha). Nesse preciso momento, dirigiu-se a outra pessoa que estava na fila e perguntou-lhe pelo tal escritório de advogados. A resposta foi desta feita afirmativa, mas com uma recomendação de não se dirigir aquela sociedade, porque se tratava de sujeitos com fama de extorquir todo o dinheiro possível a imigrantes ilegais. Esse outro disponibilizou-se, no entanto, para a ajudar. Ficou a saber de que se tratava de um prémio de 20 mil euros e apressou-se a oferecer-se ele próprio para tratar do caso. A mulher gentilmente recusou a ajuda.
Nesse momento, armando-se em salvador da pobre coitada, José voltou a interessar-se pelo assunto: «Penso que será difícil que alguém possa confiar tão elevada quantia a quem não conhece» – exclamou. A mulher concordou, demonstrando-o com o movimento afirmativo de cabeça, ao mesmo tempo que evidenciava vergonha. O outro também concordou e sugeriu uma alternativa: ele próprio compraria o bilhete, por um valor de 80% do prémio implícito, uma vez que confirmasse que era aquele bilhete era de facto o premiado, poupando-a em definitivo a qualquer risco ou incómodo. A mulher hesitou, mas depois, mostrando preocupação em resolver o assunto depressa e sem grandes ondas, acabou por concordar.
No entanto, ressalvou uma coisa: parecia-lhe justo que José pudesse comprar metade do bilhete e assim ganhar igualmente a diferença para o valor do prémio. José, de imediato recusou, mas, depois de forte insistência por parte do outro senhor, acabou por alinhar na compra. Ambos confirmaram que o bilhete era de facto o premiado, junto de um cauteleiro que se encontrava não muito longe dali (tratava-se, de facto, de um bilhete premiado, mas cujo prémio já havia saído em semana anterior; o bilhete actual tinha o mesmo número, mas havia sido comprado esta semana!). Ambos pagaram a sua parte à mulher, com cheques (o de José passado com uma Montegrappa Human Civilization), que se afastou com múltiplos agradecimentos.
José nem chegou a almoçar. Combinou com o agora sócio (no bilhete) que ele próprio poderia mandar levantar o dinheiro do bilhete, se este não visse inconveniente. O outro concordou, mas pediu-lhe que, se ele não levasse a mal, fossem de imediato levantar o dito.
Assim fizeram, seguindo ambos no mesmo táxi. Chegados ao destino, o «sócio» de José aceitou esperar no carro, enquanto o outro levantaria o dinheiro do prémio (e receberia os seus 10 mil euros, depois de ter pago 8 mil euros).
Só que o outro que ficou no táxi, mandou-o seguir, para se ir encontrar com a sua amiga – uma lindíssima mulher de raça negra -, que o esperava em sua casa. Não percebia, nem queria perceber, como é que havia estúpidos que ainda caíam neste conto do vigário.