Opinião
"Haircut"
Não vou aqui discutir quem esteve bem ou mal na votação do PEC IV.
Ficou óbvio, para quem conhece Portugal, que o que estava em causa era apenas a sobrevivência de um Governo que fez subir a dívida pública em mais de 50% em apenas seis anos e agora vai, de PEC em PEC, fazendo o número circense de salvador da Pátria, a quem todos tanto devemos. Mais, ainda, do que já devemos ao estrangeiro...
Não vou aqui discutir o conteúdo desse PEC IV. Trata-se de um programa negociado entre Portugal, a União Europeia (UE) e o Banco Central Europeu (BCE). Não sei qual o Governo que se seguirá ao actual. Mas parece evidente que terá pouca alternativa em relação à adopção de um pacote muito diferente daquele que agora foi rejeitado pela Assembleia da República. Ao ficar praticamente insolvente (a menos da mão que lhe é estendida pelo BCE), o Estado português ficou, tal como há pouco mais de cem anos, totalmente nas mãos dos seus poucos credores. Neste contexto de perda efectiva de soberania económica, a eleição da Primavera pouca influência terá numa política económica doméstica que é, efectivamente, ditada a partir da Alemanha.
Mas vou aqui falar da forma como aquela rejeição é vista pelos "mercados", ou seja, pelos ditos "especuladores" que cada vez mais fogem da nossa dívida soberana. Para a quase totalidade daqueles com quem falei no final da passada semana ali pelas bandas da "City" e de "Canary Wharf", o Parlamento português rejeitou um programa de austeridade imposto por Bruxelas (leia-se, Berlim-Frankfurt) porque os portugueses não querem apertar o cinto. É certo que houve algumas tentativas de explicar que não é bem assim. À hora em que escrevo estas linhas, a "Bloomberg" cita o Palácio de Belém para dizer que os três maiores partidos políticos portugueses apoiam a estabilização orçamental. Mas a imagem que pelos meios financeiros ficou consolidada é a de que depois disto Portugal terá inevitavelmente de pedir ajuda externa nos próximos dias, e a de que poderá não ter Governo e Parlamento para assumir os correspondentes compromissos. Nas próximas semanas estaremos, ainda mais do que nunca, debaixo do radar. E aumenta o número dos que especulam que, neste estado "desgovernado", Portugal poderá ter dificuldades em fazer a totalidade dos reembolsos de dívida dos próximos dois meses. Vai ser, portanto, um interregno difícil e que terá de ser gerido com bastante cautela.
O próximo Governo, seja ele qual for, com ou sem "ajuda externa", vai ser obrigado a uma forte contracção da despesa pública e, eventualmente, a novos aumentos de impostos, acompanhados por uma "desalavancagem" do sector bancário. Tal política, a usual "receita" FMI, reforçará os óbvios efeitos contraccionistas sobre a economia real, o que, por sua vez, acentuará a dificuldade em promover uma estabilização orçamental sustentável a médio prazo. Para um país da Zona Euro falta no receituário FMI a componente de desvalorização da moeda. Por isso, ao contrário do que sucedeu em 78/79 e 82/83, não teremos por essa via um efeito competitivo sobre as exportações. Aliás, se não formos cuidadosos, o sector exportador será significativamente afectado pela desalavancagem do sector bancário, a qual ameaça criar uma séria crise de liquidez às empresas portuguesas, deixando-as sem capacidade de crescer e de tirar partido do reaquecimento dos principais mercados de destino.
É neste contexto que surgem as polémicas declarações de Paul Krugman, classificando de estúpida a política económica portuguesa, defendendo que Portugal deveria tratar de crescer antes de reequilibrar as suas contas públicas. Fica bem aos Neo-Keynesianos dizer estas coisas, com as quais, num contexto abstracto, será fácil concordar. Mas Krugman tem o privilégio de poder não dizer onde iremos entretanto buscar o dinheiro para comer enquanto tentamos crescer. Mas para quem por aqui está nas mãos dos credores, a política é ditada pelos interesses destes. São eles os ditos "estúpidos". O nosso crescimento não é para esses matéria prioritária. Não perder eleições em "Lands" importantes, é.
Este "puzzle" é compreendido pelos mercados. As pessoas (sim, os "mercados" são pessoas) compreendem que Portugal é inviável naquele contexto porque não irá conseguir crescer, ficando preso, para muitos e longos anos, à estabilização orçamental. Por isso vêem como inevitável que o nosso país, a par com a Grécia e a Irlanda, saia dessa armadilha procedendo a uma reestruturação da sua dívida. Ou seja, que diminua os seus encargos com juros através da aplicação de um "haircut", reduzindo a sua dívida através da imposição aos credores de uma perda sobre o valor nominal das obrigações. Aliás, até já se especula que Portugal não conseguirá reequilibrar as suas contas públicas sem aplicar, também, um "haircut" nas cada vez mais pesadas receitas das parcerias público-privadas. Depois do "haircut", a estabilização orçamental fica mais fácil e a economia pode voltar a crescer. Essa é, pelo menos, a teoria subjacente.
Portugal poderá, após as eleições, ter um novo Governo estável e credível. Assim o esperamos. Poderá mesmo recorrer à "ajuda externa" para reduzir um pouco os seus encargos financeiros e demonstrar empenho em resolver os seus problemas. Mas, tal como a Grécia e a Irlanda, não irá voltar, tão cedo, a ganhar o acesso aos mercados. Enquanto estes recearem um "haircut", não voltarão a tomar dívida portuguesa. Por isso é indispensável que destas eleições saia um plano credível com medidas e metas concretas para equilibrar as contas públicas e promover algum crescimento em sectores exportadores. Mas, mais do que um plano, o fundamental é ganhar credibilidade cumprindo ou excedendo as metas do mesmo, reconquistando a confiança dos mercados e afastando o perigo de "haircut". Até isso acontecer, estaremos totalmente sem crédito e sujeitos ao "dictat" dos nossos habituais credores de último recurso.
Professor da Universidade Nova de Lisboa
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Não vou aqui discutir o conteúdo desse PEC IV. Trata-se de um programa negociado entre Portugal, a União Europeia (UE) e o Banco Central Europeu (BCE). Não sei qual o Governo que se seguirá ao actual. Mas parece evidente que terá pouca alternativa em relação à adopção de um pacote muito diferente daquele que agora foi rejeitado pela Assembleia da República. Ao ficar praticamente insolvente (a menos da mão que lhe é estendida pelo BCE), o Estado português ficou, tal como há pouco mais de cem anos, totalmente nas mãos dos seus poucos credores. Neste contexto de perda efectiva de soberania económica, a eleição da Primavera pouca influência terá numa política económica doméstica que é, efectivamente, ditada a partir da Alemanha.
O próximo Governo, seja ele qual for, com ou sem "ajuda externa", vai ser obrigado a uma forte contracção da despesa pública e, eventualmente, a novos aumentos de impostos, acompanhados por uma "desalavancagem" do sector bancário. Tal política, a usual "receita" FMI, reforçará os óbvios efeitos contraccionistas sobre a economia real, o que, por sua vez, acentuará a dificuldade em promover uma estabilização orçamental sustentável a médio prazo. Para um país da Zona Euro falta no receituário FMI a componente de desvalorização da moeda. Por isso, ao contrário do que sucedeu em 78/79 e 82/83, não teremos por essa via um efeito competitivo sobre as exportações. Aliás, se não formos cuidadosos, o sector exportador será significativamente afectado pela desalavancagem do sector bancário, a qual ameaça criar uma séria crise de liquidez às empresas portuguesas, deixando-as sem capacidade de crescer e de tirar partido do reaquecimento dos principais mercados de destino.
É neste contexto que surgem as polémicas declarações de Paul Krugman, classificando de estúpida a política económica portuguesa, defendendo que Portugal deveria tratar de crescer antes de reequilibrar as suas contas públicas. Fica bem aos Neo-Keynesianos dizer estas coisas, com as quais, num contexto abstracto, será fácil concordar. Mas Krugman tem o privilégio de poder não dizer onde iremos entretanto buscar o dinheiro para comer enquanto tentamos crescer. Mas para quem por aqui está nas mãos dos credores, a política é ditada pelos interesses destes. São eles os ditos "estúpidos". O nosso crescimento não é para esses matéria prioritária. Não perder eleições em "Lands" importantes, é.
Este "puzzle" é compreendido pelos mercados. As pessoas (sim, os "mercados" são pessoas) compreendem que Portugal é inviável naquele contexto porque não irá conseguir crescer, ficando preso, para muitos e longos anos, à estabilização orçamental. Por isso vêem como inevitável que o nosso país, a par com a Grécia e a Irlanda, saia dessa armadilha procedendo a uma reestruturação da sua dívida. Ou seja, que diminua os seus encargos com juros através da aplicação de um "haircut", reduzindo a sua dívida através da imposição aos credores de uma perda sobre o valor nominal das obrigações. Aliás, até já se especula que Portugal não conseguirá reequilibrar as suas contas públicas sem aplicar, também, um "haircut" nas cada vez mais pesadas receitas das parcerias público-privadas. Depois do "haircut", a estabilização orçamental fica mais fácil e a economia pode voltar a crescer. Essa é, pelo menos, a teoria subjacente.
Portugal poderá, após as eleições, ter um novo Governo estável e credível. Assim o esperamos. Poderá mesmo recorrer à "ajuda externa" para reduzir um pouco os seus encargos financeiros e demonstrar empenho em resolver os seus problemas. Mas, tal como a Grécia e a Irlanda, não irá voltar, tão cedo, a ganhar o acesso aos mercados. Enquanto estes recearem um "haircut", não voltarão a tomar dívida portuguesa. Por isso é indispensável que destas eleições saia um plano credível com medidas e metas concretas para equilibrar as contas públicas e promover algum crescimento em sectores exportadores. Mas, mais do que um plano, o fundamental é ganhar credibilidade cumprindo ou excedendo as metas do mesmo, reconquistando a confiança dos mercados e afastando o perigo de "haircut". Até isso acontecer, estaremos totalmente sem crédito e sujeitos ao "dictat" dos nossos habituais credores de último recurso.
Professor da Universidade Nova de Lisboa
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