Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
Luís Pais Antunes - Advogado lpa@plmj.pt 11 de Fevereiro de 2010 às 11:44

"Fahrenheit 2010"

Os recentes "episódios" que vão marcando a actualidade trouxeram-me à lembrança "Fahrenheit 451", o romance que Ray Bradbury escreveu há quase 60 anos, retratando uma sociedade em que os livros eram proibidos e queimados juntamente...

  • 5
  • ...
Os recentes "episódios" que vão marcando a actualidade trouxeram-me à lembrança "Fahrenheit 451", o romance que Ray Bradbury escreveu há quase 60 anos, retratando uma sociedade em que os livros eram proibidos e queimados juntamente com as casas que os albergavam e os respectivos leitores perseguidos e, na melhor das hipóteses, internados em hospícios. Hoje em dia, Guy Montag, personagem central da história, "bombeiro" de profissão (leia-se "queimador de livros", tal como o pai e o avô), dedicar-se-ia provavelmente a queimar jornais e outros suportes de comunicação ainda desconhecidos na época em que Bradbury passava os dias a escrever na biblioteca da Universidade da Califórnia. Ou, numa versão retocada, utilizaria esses mesmos jornais e demais suportes de comunicação para "queimar" pessoas, actividade que, hoje como nunca, parece concentrar a atenção de um número crescente de cidadãos. Mas mais do que o enredo da história, é o ambiente pesado que se respira, o avolumar de comportamentos anti-sociais e uma flagrante diminuição do sentido ético que me fazem reviver muitas das cenas do livro que Truffaut passou para a tela.

Confesso que já me perdi neste constante avolumar de declarações, citações e transcrições que diariamente nos batem à porta e nos contam tantas "verdades" quantos os respectivos autores.
Falo naturalmente do recentemente divulgado "plano do Governo para controlar a comunicação social", do qual se prometem já novas revelações escaldantes para o final desta semana. Mas poderia falar de vários outros "planos" e "acções" que nos últimos anos nos batem à porta com uma frequência avassaladora. Nunca há um fim em cada uma destas histórias, mas uma sucessão de explicações mais ou menos atabalhoadas que deixam no ar uma sensação de desconforto. Na melhor das hipóteses, há várias cenas finais, a fazer lembrar aquelas séries televisivas e novelas em que os espectadores são convidados a votar e a escolher como é que querem que a história acabe.

São muitos (quase todos?) os protagonistas que ficam mal na fotografia. Mas poucos são aqueles que saem verdadeiramente "feridos de morte" destas batalhas, e mesmo esses acabam quase sempre por reaparecer, qual Fénix renascida das cinzas. Há, contudo, uma vítima com prognóstico muito reservado e que ameaça não ter condições para sair do estado comatoso em que se encontra. Refiro-me ao sistema de justiça. Doente há muitos anos pelas mais variadas razões (políticas erradas, organização deficiente, legislação "esquizofrénica", incapacidade de se adaptar à evolução dos modelos de organização social) e com responsabilidades repartidas entre todos (governos, magistrados, advogados, funcionários judiciais, mas também a generalidade dos utilizadores), o sistema de justiça não só não apresenta qualquer sinal de verdadeira recuperação, como dá mostras de uma crescente incapacidade para reagir a quaisquer estímulos ou "medicação".

Até há relativamente pouco tempo, os males de que a Justiça padecia eram graves, mas aparentavam ter cura. Os atrasos (muitas vezes incompreensíveis), as dificuldades de muitos no acesso ao direito, a "justiça dos ricos" versus a "justiça dos pobres", a crónica falta de instalações condignas e/ou de magistrados onde eles faziam mais falta, apenas para citar alguns dos exemplos recorrentemente referidos. A situação agora é significativamente mais grave. A justiça saiu à rua e os seus principais agentes quase que já passam mais tempo a falar para a comunicação social do que a administrar a justiça. O "segredo de justiça" passou a ser uma figura meramente retórica e objectivamente já não serve os interesses de ninguém. As salas de audiência saíram dos tribunais e instalaram-se na rua, nas televisões, nos ecrãs de computador e nos cafés. O colectivo de juízes é agora composto por todos nós. Os mesmos que servem de testemunhas de acusação ou defesa, de advogado ou de parte, em função das circunstâncias...

Tal como o tempo, na frase que mudou a vida de Montag ("O tempo adormeceu ao pôr do Sol"), também a Justiça parece ter-lhe seguido o exemplo. E nós vamos pelo mesmo caminho...



Advogado
Assina esta coluna quinzenalmente à quinta-feira




Ver comentários
Mais artigos de Opinião
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio