Opinião
A verdade dos números
Dizia Voltaire que a arte da medicina consiste em distrair o paciente enquanto a natureza cura a doença. Aparentemente, também na política portuguesa há quem adote o mesmo princípio. Mas ambos estão enganados: até a natureza tem os seus limites…
Sem surpresa, os números ontem divulgados pelo Eurostat relativos à dívida e ao défice públicos em 2017, na Zona Euro e na União Europeia, vieram confirmar o que os menos distraídos já sabiam: somos os terceiros mais endividados e os segundos com maior défice público.
Não faltará quem venha dizer que isso não é tão relevante assim. Que o único responsável para o mau resultado no défice foi a própria União Europeia ao impor-nos o registo dos custos com a recapitalização da CGD na execução orçamental. Não fora essa imposição e estaríamos, orgulhosamente, em condições de apresentar um resultado negativo de apenas 1%. Já no plano da dívida pública, muitos saudarão os 125,7% do PIB pelo recuo que tal significa face aos 129,9% de 2016.
Mais do que os méritos ou os deméritos que tais resultados traduzem, aquilo que é verdadeiramente importante é saber como estamos relativamente aos nossos parceiros e o que podemos ou devemos fazer no futuro próximo para termos sucesso no caminho - necessariamente longo… - que ainda temos de percorrer para apresentarmos contas públicas saudáveis e equilibradas.
Começa por ser importante ter a noção de que 13 países não têm qualquer défice nas suas contas, 12 dos quais apresentam, aliás, um maior ou menor superavit (entre 0,5% e 3,9%). Há países grandes (como a Alemanha), médios (República Checa, Dinamarca, Holanda, Suécia, por exemplo) e pequenos (Malta, Chipre, Luxemburgo e Estónia). Até a Croácia e a Grécia fazem parte do "clube". Vários outros países (da Irlanda à Finlândia, passando pela Estónia) apresentam défices aquém dos 0,6%. Espanha (-3,1%) e Portugal (-3%) fecham a lista.
Do lado dos que menos se endividam voltamos a encontrar alguns dos que têm as contas anuais equilibradas ou mesmo excedentárias, como é o caso da Dinamarca, da República Checa ou do Luxemburgo. Nos quatro mais endividados voltamos a encontrar Espanha e Portugal, apenas ultrapassados por Itália e pela Grécia.
De forma caricatural poderíamos dizer que os dinamarqueses e os checos pagariam as dívidas respetivas com a riqueza produzida entre janeiro e abril. Já os portugueses também fariam o mesmo, mas o abril seria o do ano seguinte…
Esta breve comparação deveria ajudar-nos a refrear os ânimos de alguns (muitos?) que persistem em vender ilusões: estamos longe, muito longe ainda, de podermos considerar que o mau tempo já passou e que voltámos a ter a liberdade de agir da forma irresponsável que nos levou ao "buraco". Aproveitar o sol que a boa conjuntura internacional nos trouxe, enquanto se aumentava - ainda mais - a carga fiscal e se travava a fundo no investimento público (que haveremos de pagar muito em breve…), deu-nos espaço para respirar, mas não nos colocou a salvo de uma recaída.
Ainda que a economia não arrefeça - e antecipa-se que tal será o caso a partir do próximo ano - a receita não poderá continuar a ser a mesma. A carga fiscal tem de baixar e o investimento nos serviços públicos não pode continuar a estar claramente aquém do que conseguimos fazer mesmo no pior período da intervenção externa. Precisamos de reformas corajosas - como aquelas que grande parte dos países acima mencionados fizeram ou estão a fazer - e não de reversões e de placebos. Regressar ao passado no arrendamento, na legislação laboral, nas carreiras da função pública ou nos transportes (para dar apenas alguns exemplos) não nos trará nada de bom; apenas nos dará mais pobreza, mais depressa.
Dizia Voltaire que a arte da medicina consiste em distrair o paciente enquanto a natureza cura a doença. Aparentemente, também na política portuguesa há quem adote o mesmo princípio. Mas ambos estão enganados: até a natureza tem os seus limites…
Advogado
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