Opinião
Quem tem medo do mercado?
Durante anos a fio, os défices estruturais da RTP foram tema de inúmeras capas de jornais e de editoriais inflamados.
Luís NazaréEra o insuportável gigantismo da estrutura orgânica, da dívida, dos prejuízos e dos subsídios estatais à exploração. Era a indignação generalizada perante a manifesta má qualidade dos conteúdos, justamente catalogados de réplicas tristes da lógica festiva e popularucha dos canais privados.
Eram os coros da “racionalidade económica”, clamando a uma só voz pela manutenção do status quo no que ele tinha de mais favorável aos interesses instalados – o fecho do mercado da open TV a dois operadores privados - e pelo fim dos subsídios estatais e da publicidade nos canais públicos.
Hoje, que os seus desejos estão à beira de se concretizar perante o habitual alheamento da opinião pública, só resta um personagem infeliz – a ministra das Finanças, condenada a suportar os pesados défices de exploração da RTP.
Para a teoria económica clássica, não é fácil catalogar o produto televisão. Nunca teve as características genuínas de bem público, nem sequer nos primórdios das ondas hertzianas.
À custa de algumas concessões intelectuais, entrou na categoria dos bens de mérito, mas depressa a dinâmica dos mercados – pelo menos nos países mais desenvolvidos - se encarregou de provar a predominância dos pressupostos mercantis sobre as valências intangíveis do serviço público.
De uso e fim verdadeiramente públicos restam a utilização do espectro radioeléctrico e o desígnio de elevação dos espíritos, no pluralismo e na recusa do fácil. As preferências do mass market poderão ser por natureza duvidosas e perversas, mas o dever do Estado é perseguir, numa lógica global de mercado, os propósitos de interesse geral que o imediatismo e os interesses comerciais desconhecem. Para tal, tem de ser estratega e regulador.
Enquanto estratega, o papel de referência do Estado no panorama audiovisual traduz-se na difusão de conteúdos em sinal aberto, através de um ou mais canais próprios, conformes à expressão triangular do desígnio televisivo – informar, formar, recrear – e aos objectivos de divulgação linguística e cultural além-fronteiras que o sector privado não está em condições de cumprir (RTP Internacional e RTP África).
Enquanto regulador, tem de começar por dar provas de vida, já que todos sabemos que o órgão mais insondável da democracia portuguesa, chamado Alta Autoridade para a Comunicação Social, é um exemplo trágico de ineficácia e opacidade. Concentremo-nos, pois, na dimensão estratégica da televisão pública.
Meio século após o surgimento da televisão em Portugal e onze anos após a liberalização do mercado, até que ponto se justifica uma presença estatal em metade (dois em quatro) dos canais hertzianos? Até onde pode chegar a paciência do erário público? Quantos mais anos de défices e ilusões perdidas serão necessários até tomarmos consciência de que o País não pode nem precisa de sustentar dois canais de serviço público? Conheço a tese peregrina da “dualidade do serviço público televisivo”, um canal dito “generalista” e outro dito “minoritário” – ou seja, um dirigido ao povão mais evoluído e outro a uma elite sócio-cultural de gosto fortemente anti-popular. Sei do esforço que inúmeras figuras da intelectualidade portuguesa emprestaram à tarefa ciclópica (mais uma) de concretizar “cientificamente” a noção de serviço público.
E sei da sensatez que a actual gestão da RTP tem demonstrado na resolução dos problemas endémicos e na elevação dos índices de qualidade do canal público. Só que o problema não se resolve com mais gestão, por mais competente que seja.
A brutalidade dos défices de exploração e a incongruência do cardápio “público” de conteúdos serão uma fatalidade enquanto não se perceber que só há uma solução lógica para o problema - privatizar o primeiro canal da RTP e transformar o segundo numa referência inequívoca de qualidade, mesmo que com sacrifício (temporário?) do share.
Sejamos honestos. Os noticiários da RTP têm, de facto, uns salpicos de sangue a menos que os dos canais privados, os concursos são um pouco mais educativos e as transmissões de futebol em sinal aberto muito mais frequentes. É isto que justifica a manutenção de um canal público generalista? Não. Os grupos instalados, Impresa e Media Capital, não se cansam de repetir o estafado argumento da exaustão das receitas publicitárias. Será isso pretexto bastante para o fecho do mercado hertziano? Não, desde que as obrigações de serviço público – onde não deveria constar o futebol, excepto os jogos da selecção – sejam repartidas entre os broadcasters. Mesmo que a elasticidade das receitas publicitárias fosse nula e a conjuntura económica se mantivesse desfavorável, nada impediria a alteração do status quo.
As finanças públicas, os consumidores e a dinâmica concorrencial só teriam a ganhar com a privatização da RTP 1 e a criação de um organismo de regulação para o audiovisual. Afinal, quem tem medo do mercado?
Por Luís Nazaré, Economista e professor do ISEG
Artigo publicado no Jornal de Negócios