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16 de Julho de 2003 às 11:14

Processo Casa Pia

Que uma senhora juíza possa, por seu livre alvedrio, converter-se em produto mediático e desenvolver, nesse registo, todo o tipo de considerações acerca de processos em que antecipa uma sua eventual intervenção, é inaceitável.

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Desde o início que esta história da Casa Pia parece ter a enorme virtude de, nas suas várias vertentes, ir revelando um imenso e obscuro mundo de sombra. Aliás, com um alcance que extravasa a própria sordidez do caso e que vem expondo uma crise institucional profunda.

O último e impressivo episódio da saga traduziu-se na incompreensível (e lamentável) divulgação dos nomes dos juízes do Tribunal da Relação de Lisboa (Trigo de Mesquita e Miranda Jonas) e do Supremo Tribunal de Justiça (Soreto de Barros), agora chamados a intervir no processo. Ora, a questão que se impõe é muito simples: para quê??? O que interessa saber quem foi – ou foram – o(s) juiz(es) sorteado(s)?!

A resposta é óbvia: nada! Não interessa – nem deve interessar – a ninguém saber quem é que vai julgar um concreto recurso ou um concreto pedido de “habeas corpus”. Interessa, isso sim, ter a noção de que existe um quadro institucional e regimental que funciona, que dá respostas, que assegura as garantias devidas e que permite confiar numa decisão justa. Nada mais.

Porém, apesar de tudo isto dever ser absolutamente evidente num Estado de Direito, em Portugal ninguém parece percebê-lo. Com uma resistência que interpela e nos obriga a pensar, a verdade é que, colectivamente, continuamos sem verdadeira consciência de certos rudimentos do sistema.

Daí a dificuldade de aprofundar uma democracia que só pode permanecer incipiente. E daí a ameaça que persiste em pairar sobre a nossa vida política.

De resto, sombras que também escapam à maior parte... Seja como for, inegável é que a comunicação social serviu, acriticamente, a pior das causas. E, pecado maior, publicou aquilo que nunca deveria ter constituído notícia. O público, esse, calou. Viu repetir à saciedade os nomes dos três senhores e nada disse. Achou natural.

Aparentemente, nem uns nem outros percebem a exacta medida em que protagonizam uma crise séria e profunda. A centralidade que a Justiça e os Tribunais devem assumir na estrutura de uma democracia é-lhes distante e, patentemente, não integra um reduto identitário de valores.

Os princípios que, num regime democrático, sustentam o funcionamento do sistema judicial e o estatuto dos magistrados não foram ainda compreendidos e, por isso, permanecem por assimilar. O que, evidentemente, explica a espantosa ausência de indignação face à divulgação dos nomes de Trigo de Mesquita, Miranda Jonas e Soreto de Barros.

É que em nenhum espírito parece ter perpassado a pergunta inevitável: porquê??? Se é facto objectivo e iniludível que a identificação dos três juízes, por nada acrescentar, não encerra qualquer interesse susceptível de determinar a divulgação da notícia, que outra razão poderá ter subjazido à unânime opção de alardear o resultado dos sorteios?

Goste-se ou não da ideia, a resposta é, também aqui, elementar: o único alcance útil da divulgação sempre seria o condicionamento assim imposto aos três sorteados. Privados do anonimato e, portanto, da reserva e da distância que devem envolver o acto de julgar, Trigo de Mesquita, Miranda Jonas e Soreto de Barros passaram a ser alvo de uma imensa e difusa pressão.

Absolutamente contrária aos interesses de uma decisão justa, mas porventura conveniente a outras lógicas. Se a isto juntarmos as dúvidas que logo envolveram a escolha de Trigo de Mesquita, é ostensivo que os danos se tornaram irreversíveis.

Lendo a imprensa, não há hesitação possível. Do pronto pedido de escusa, logo tudo se soube. Enredando mais e mais a história, foi-se dando conta de inconfessadas reservas contra o desembargador. Depois, garantiu-se que tudo teria chegado ao conhecimento do procurador João Guerra e que este só por razões mesquinhas não teria retirado consequências do facto. Finalmente, divulgou-se que o Supremo Tribunal de Justiça entendera rejeitar o pedido de escusa.

Portanto, com uma eficácia exemplar, à pressão seguiu-se a descredibilização. Num caso, o que é mais do que suficiente para deixar um aviso sério aos demais. Mas, ao fundo, nenhum desassossego. Silêncio total. E, extraordinário, ninguém se incomodou!

Enquanto isto, e como se a desgraça não fosse já suficiente, emerge para a fama uma nova protagonista. Diz que é juíza e que se chama Ana Beatriz Silva Pinto. O pretexto do estrelato, naturalmente, o mesmíssimo processo da Casa Pia. Quanto ao mais, a senhora assevera que ainda nem sequer tem a certeza de ficar no TIC de Lisboa. Depois de a verem e ouvirem, milhares de portugueses terão ficado presos de uma mesma esperança: pode ser que ela não fique!

Do óbvio desequilíbrio psíquico da personagem, falou ela própria. Qualquer comentário adicional é supérfluo. Mas que a direcção da instrução em processos desta complexidade possa ser confiada a alguém assim, isso já assusta. Que uma senhora juíza possa, por seu livre alvedrio, converter-se em produto mediático e desenvolver, nesse registo, todo o tipo de considerações acerca de processos em que antecipa uma sua eventual intervenção, é inaceitável. Que a comunicação social resolva escancarar-se a tais impulsos e assegurar eco a todo e qualquer desmando, é absolutamente intolerável.

Por qualquer razão perversa, entre nós, a vivência da democracia determinou uma séria dissolução dos dados que fazem a Justiça. Da dessacralização que sempre seria inevitável – e, aliás, positiva se adequadamente entendida e enquadrada –, exorbitou-se para a pura e simples perda de referências. Quando se anuncia a greve como forma de reivindicar melhores condições de trabalho e um outro estatuto remuneratório, era bom que os juízes portugueses não perdessem de vista o essencial.

Por Sofia Galvão

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