Opinião
Porquê deter ouro nas nossas reservas cambiais?
Com frequência regressa o interesse dos media e dos observadores, em geral, sobre o tema das reservas de ouro do nosso Banco Central. E não é demais reflectir de novo sobre o assunto, quando a cotação no mercado quase atingiu o impressionante valor de 100
Com frequência regressa o interesse dos media e dos observadores, em geral, sobre o tema das reservas de ouro do nosso Banco Central. E não é demais reflectir de novo sobre o assunto, quando a cotação no mercado quase atingiu o impressionante valor de 1000 US$ a onça-troy.
Pela sua importância refiro a notícia no Jornal de Negócios, de 19 de Março de 2007, intitulada "Ouro vale mais mil milhões apesar da venda de reservas" , outra, muito recente, do Diário Económico de 30 de Janeiro de 2008, intitulada "Ouro engorda reservas do Banco de Portugal" e ainda, bastante mais antiga, é certo, a sistematizar a questão duma forma notável, como é seu timbre, a nota do Prof. Jacinto Nunes, na revista Homem Magazine, intitulada " A riqueza das nações: o mito do ouro". Nesta se clarificam algumas "mitificações" do já de si mitificado "ouro monetário".
Na mesma nota fica-se a saber que o ouro esteve longe de ser uma obsessão de Salazar, que o ouro pertencia (e pertence) ao Banco Central e que o poder de decisão sobre alienação ou forma de aplicação coube sempre (e continua a caber, excepto na parte em que partilhamos reservas com o Banco Central Europeu), à administração da instituição. A ideia que já tem sido levantada, de alienar este "pecúlio" para acudir a "certas necessidades nacionais", é também aí muito bem analisada.
Particularmente interessante, e muito ponderada, é a observação contida no ponto 2 da dita nota, que reza assim: "A seguir ao 25 de Abril foi altamente benéfica a existência de uma forte componente de ouro nas nossas reservas cambiais. As limitações nas vendas de ouro ou na concessão de empréstimos garantidos por ouro, obrigaram-nos a encarar mais cedo a realidade. Se as reservas fossem constituídas basicamente por moeda estrangeira, tudo teria marchado na voragem e teríamos tido um período mais prolongado de "folgança"". Anoto as duas expressões muito eloquentes : "marchado" e "folgança".-
Esta adjectivação e a satisfação da atitude prudencial então adoptada, são a nota saliente de uma época muito difícil, em que o Professor, e outros, entre os quais eu próprio, acompanharam a degradação das condições cambiais do País, durante alguns muito difíceis anos pós-revolucionários.
Foi sempre difícil de entender, para muita gente, esta questão, supostamente estranha, de o ouro dos cofres do Banco pertencerem a este, (e, como tal, figurarem no seu activo contabilístico empresarial), e não ao Governo, à República ou ao Povo.
O mais espantoso para toda a gente é, porém, saber como sucedeu que a cotação inicial de pouco mais de 35 dólares a onça, (1961) tenha subido a cerca de 800 dólares a onça, por volta do início dos anos oitenta, e, depois de uma trajectória de redução de valor, tenha voltado a subir, de tal forma que quase atingiu os não menos míticos 1000 dólares a onça, no início deste ano 2008.
O gráfico que o Diário Económico apresenta, tem muito interesse, por dar a magnitude física e o valor de mercado das reservas do Banco de Portugal, desde a Revolução.
Percebe-se assim a descida de um nível de mais de 800 toneladas, antes da Revolução, para um patamar abaixo das 400 toneladas, na actualidade.
Reconhece-se a queda ocorrida até ao início dos anos 80, cuja razão de ser, mesmo o cidadão comum intui facilmente. Daí em diante o gráfico mostra que só no início do novo século (e do milénio) volta a haver redução para um pouco mais de 600 toneladas. E, por fim, transacções posteriores, certamente relacionadas com decisões das autoridades monetárias nacionais e internacionais e da nossa entrada na União Europeia e no Euro, trazem o "stock" para menos de 400 toneladas, no presente.
Quer dizer que a tese de "valer mais transformar o ouro em "foreign currency"" não comandou totalmente os destinos daquele "pecúlio", mesmo depois de desmonetarizado o ouro, pelas autoridades monetárias internacionais. Anote-se que os outros países com fortes reservas de ouro também foram parcimoniosos nas suas alienações.
Segundo o Jornal de Negócios, daquela data de 2007, "o País (leia-se, o Banco de Portugal), alienou 225 toneladas de ouro em quatro anos, mas o valor disparou".
Repare-se que, mesmo assim, o valor do "pecúlio" em 2008 terá sido de cerca de 12,59 mil milhões de dólares, que comparam com 14,34 mil milhões em 1980, pouco depois da primeira alienação por razões de "serviço público e interesse nacional".
No mesmo artigo do Jornal de Negócios mostra-se como Portugal está entre os 14 países do mundo com maior percentagem de reservas em ouro. À cabeça destes, pese embora a decisão de Nixon da declaração de inconvertibilidade, para parar a assustadora vaga de solicitações para conversão do dólar, Forte Knox continua a registar mais de 8 mil e cem toneladas do precioso "metal de quatro noves" de pureza metálica.
Em local apropriado, e para fins académicos (*), eu próprio procurei mostrar o que na minha opinião se podia dizer sobre a questão "vender ou não o ouro", trocando-o por divisas fortes, convertíveis, tirando da aplicação feita os rendimentos possíveis, superiores aos que se poderiam obter com a aplicação em ouro em mercados pouco experimentados.
O "saboroso" peso da "pesada herança" de metal amarelo, foi a razão principal da disponibilidade de todo o mundo financeiro, para, em operação sem paralelo, no período inicial da Revolução, apoiar Portugal num transe difícil (escassez de divisas para as liquidações diárias de operações correntes da Balança de Pagamentos).
Foi uma operação de considerável peso, a que se deu o nome de "Grande Empréstimo", e pela única vez feito ao próprio Banco Central. E só a este "borrower" e não a qualquer outro, vários países se dispunham a conceder fundos de empréstimo.
Trata-se de operação muito complexa, de que a maior parte da população, de tão nervosa com o "processo revolucionário em curso", mal se apercebeu.
Mas ficou muito claro que a prudência da conservação deste "pecúlio " foi a principal razão do sucesso desta operação, quase não apercebida pelo País, e não a "amizade ou interesse político" dos chamados "países amigos".
As tentativas posteriores de dar algum rendimento às reservas de ouro, foram sempre muito cautelosas. E essas cautelas haveriam de mostrar-se sensatas pois um conhecido caso Drexel, relacionado com uma muito badalada falência no sector financeiro, ligado com o então "neo-negócio" dos "junk bonds", viria a alastrar a outras entidades que aceitavam remunerar empréstimos do metal amarelo por períodos curtos. Vários bancos centrais iniciaram esta experiência e cedo se arrependeram, como os "media" da época abundantemente mostraram.
No nosso caso o pequeno activo envolvido, a título experimental, acabou por ser recuperado, até em valor superior, ao que julgo saber, após processo judicial onde o Federal teria apoiado a posição dos bancos centrais.
Poderá perguntar-se :"mas afinal" para que serve o ouro das nossas reservas? Se estas são partilhadas em parte com os parceiros do Banco Central Europeu?
Se recorrermos à informação prestada pela própria Lei Orgânica do Banco de Portugal na sua formulação de 1990 (DL 337/90), e em particular aos seus artºs 15º e 16º percebe-se que ao Banco cabe a defesa da "estabilidade do valor da moeda nacional" e que, para isso, deterá disponibilidades sobre o exterior, e etc., que cubram as responsabilidades em moeda nacional.
Este era o papel importante do Banco Central e nele assentava a defesa do escudo como meta principal. E sendo o ouro um "asset" dos de maior estabilidade, no sentido de que o seu valor não oscilava, pelas mesmas razões e da mesma forma que as demais moedas do mercado de câmbios, detê-lo em stock acrescentava, e muito, à capacidade de desempenhar a tarefa estatutariamente estabelecida.
Perguntar-se-á : "então e agora, que quem trata da defesa da moeda é o Banco Central Europeu e já nem existe moeda nacional para isoladamente defendermos?
Mesmo antes de aparecer o euro, o Fundo Monetário Internacional defendeu a exclusão do ouro de "asset monetário", e defendeu que os países aderentes ao FMI procedessem, paulatinamente (por razões de mercado e de defesa do valor), à alienação do seu ouro de reserva, tendo ele próprio iniciado as suas alienações.
O surgimento do Euro e a entrada de Portugal, primeiro com o escudo no cabaz do ÉCU, e agora na zona do Euro, haveria de trazer uma razão acrescida para alienações. Penso que o nosso Banco Central o terá feito em alienações pequenas e programadas (porventura combinadas com o BCE).
Ao BCE cabe agora a defesa da estabilidade do euro. Pareceria, assim, que o BC português deixou de ter a obrigação que lhe era apresentada pela sua anterior Lei Orgânica, e, consequentemente, teria deixado de existir a principal razão para a detenção de ouro nas reservas cambiais. E a articulação com o BCE na gestão das reservas, poderia também ser invocada para justificar a alienação de ouro, ou pelo menos de algum ouro. Mas a margem de manobra deixada aos bancos centrais nacionais é muito grande.
Parece, pois, que a razão única pela qual ainda existe muito metal em stock (atenção, tal como em todos os países apontados no artigo do Jornal de Negócios), será o desejo de não perturbar o mercado deste metal, e, ir guardando "prudencialmente", (sem perder de vista os outros países), o capital de segurança que, apesar de tudo, (e como se mostra nas cotações de Janeiro de 2008) o "metal amarelo" ainda representa.
(*)Moeda e Instituições Financeiras, D. Quixote/ISG, 2ª edição, 1998, (pag 94).
Professor no ISG
Coluna semanal à segunda-feira