Opinião
Política Económica ou Economia da Política?
A apresentação do Orçamento do Estado (OE) para 2004 será um momento importante de clarificação no tocante à política económica nacional.
É o assumidamente, pois o Governo tem vindo a dar grande relevo e destaque aos objectivos e instrumentos desta política, sobretudo na sua vertente de curto prazo – até porque o nível de incerteza a que a economia internacional tem estado sujeita a isso o obrigou. Mas é-o também para prazos mais dilatados, como resulta do seu papel na fixação dos objectivos de médio prazo (veja-se o Programa de Estabilidade e Crescimento) e pelo seu peso das decisões de investimento público, com reflexos no crescimento futuro da economia.
É, por isso, paradoxal para qualquer observador que: - se fale simultaneamente de choque fiscal com redução de impostos, acabando-se por fazer um aumento do IVA; - se defenda a necessidade de conter a despesa pública, para depois esta crescer no subsector Estado (mais directamente controlável) 8% em termos nominais, cerca de 3,5% em termos reais; - se admita uma perda importante de receita fiscal, que poderá exceder os dois mil milhões de euros, para reafirmar os compromissos orçamentais e ao mesmo tempo anunciar reduções de impostos.
O próximo OE será, portanto, um elemento de clarificação das reais intenções do Governo no tocante ao ajustamento a curto e médio prazo das finanças públicas.
Isto porque, por um lado, será se não a última oportunidade para tomar medidas necessárias para conter a despesa pública, pelo menos uma das últimas. Mas, por outro lado, o OE irá necessariamente traduzir o equilíbrio entre o que é necessário como ajustamento económico e o que é desejável para o Governo como estratégia política. E será o reflexo de um crescimento económico que tarda em chegar com a força desejada em função do calendário eleitoral, e das sequelas por que o País recentemente passou e das questões que estas deixaram em aberto para quem tem que conduzir os destinos do País. E que determinará na prática até que ponto se cederá no domínio da economia – que tem sido o mais relevante palco de discussão política desde as últimas eleições – ao que for considerado politicamente importante de fazer.
Até que ponto deve ser levado o rigor orçamental não é um problema exclusivo do nosso País. A França e a Alemanha estão a preparar-se para adoptar pacotes fiscais de estímulo à economia que terão como consequência, com grande probabilidade, fazer estes países incumprirem mais uma vez o limite de 3% do PIB para o défice orçamental, fixado no Pacto de Estabilidade. Não se trata de uma questão menor, pois vai irremediavelmente levantar o espectro da aplicação de sanções e gerar uma discussão da qual não se conhece hoje a saída provável nem tão pouco a possível. E levantará pelo menos a questão de se saber se o Pacto é para todos e para todas as ocasiões.
Mas, como se costuma dizer, com o mal dos outros podemos nós bem. A questão que para nós será de fundo é de saber se o Ministério das Finanças vai conter o crescimento da despesa pública, o que sob o ponto de vista económico é essencial para o país, mesmo que seja com custos para o conjunto do Governo. E isto quando a distribuição de benefícios e custos não é independente do horizonte temporal – a disciplina orçamental tem custos de curto prazo, mas largamente excedidos pelos benefícios a médio prazo, e desconheço quaisquer benefícios sociais a médio prazo da indisciplina.
Para que não se pense que esta tentação entre sacrificar o futuro económico para perseguir o presente político é uma pecha do nosso País, e que as divergências dentro da esfera de decisão não ocorrem senão na nossa casa, deixem-me citar alguns exemplos de uma economia reconhecidamente desenvolvida também na arte da formulação das políticas de desenvolvimento económico e social, e da política económica em particular – a economia americana:
- Primeiro caso, a guerra do Vietname: o Presidente Johnson foi avisado pelo Chairman do Council of Economic Advisers (CEA), G.Ackley, que manter os EUA em guerra conduziria inevitavelmente a um aumento de impostos para a financiar. Ignorou o avisou. Os impostos aumentaram;
- Segundo caso, administração Nixon: P. McCracken e H. Stein opõem-se à introdução do controlo de salários e preços, que transmite sinais errados ao sistema económico e bloqueia o ajustamento, também sem sucesso;
- Terceiro caso, administração Reagan: o chairman do CEA M. Feldstein tenta convencer o Presidente dos riscos da sua política económica implicar elevadíssimos défices orçamentais e de transacções com o exterior. O resultado é conhecido, os EUA passaram em poucos anos de maior credor mundial a maior devedor mundial;
- Quarto caso, administração Bush (pai): M. Boskin tenta convencer o Presidente sobre os maus fundamentos da economia americana e dos riscos a curto prazo para o crescimento económico. Continuou a imperar a visão do “oásis”, com o destino que é hoje conhecido (é a economia,...).
Uma parte menos conhecida destas histórias, porque “jogada” com grande discrição, é o que se passa nos “bastidores”: Paul McCracken demitiu-se quatro meses depois da divergência com o Presidente; quanto ao Prof. Boskin, que não o fez, teve como prémio da administração Bush o aviso de que não seria renomeado no caso de vitória de G. Bush nas eleições (o que não aconteceu – a vitória).
Para aqueles que acham que o que acontece do outro lado do Atlântico só acontece aos que lá estão, não é de mais relembrar a divergência entre o Chanceler Helmut Kohl, que personificava, como chefe do Governo, a autoridade fiscal alemã, e o Sr. Karl Otto Pohl, então Presidente do Bundesbank, autoridade monetária do mesmo País, sobre a taxa de conversão a praticar entre o marco alemão e o marco da então República Democrática Alemã. É conhecida a decisão final e os custos que tal implicou para o conjunto da Europa e o respectivo horizonte temporal. É igualmente conhecido o pedido de demissão do Presidente do Bundesbank.
Por isso é importante saber quem vai ganhar no nosso País: a contenção orçamental (e todos nós, na minha opinião), ou os aumentos de despesa (já anunciados para a Ciência, para a Cultura, para a Educação, para a Investigação, para a Defesa) e as reduções de receita (para já o IRC, prometido também o IRS), para não falar de outras medidas avulsas como a renegociação da Lei das Finanças Locais, depois de se aprovar a Lei de Estabilidade Orçamental. Em que ficamos? E como fica o Ministério das Finanças nisto? O OE 2004 permitirá pelo menos começar a levantar a ponta do véu.
Fernando Pacheco, professor universitário