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24 de Julho de 2003 às 11:43

Pedro Guerreiro: «David Kelly e o fim dos ídolos no jornalismo»

O escândalo da BBC no Caso Kelly mostra que não há meios insuspeitos. Também os jornais portugueses andam a pisar terreno minado. É assim que se criam os ídolos. E é assim, lá do alto, que caem outros ídolos.

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O caso é súbito e tem três momentos fundamentais. 1º: a BBC noticia que Tony Blair havia iludido o povo inglês quanto às verdadeiras razões do ataque ao Iraque, tendo empolado as provas de existência de armas de destruição maciça ao abrigo de Saddam Hussein.

A notícia provoca um terramoto político e o Executivo britânico pressiona a BBC a revelar a sua fonte. Andrew Gilligan, o jornalista, recusa-se a revelá-lo mas as suspeitas caem imediatamente sobre David Kelly, perito em armas de destruição maciça que assessorou o Governo inglês. 2º: David Kelly aparece morto, com o punho esquerdo cortado e uma caixa de analgésicos perto de si.

Ao mesmo tempo que a tese de suicídio é assumida pela polícia começam teorias de conspiração que procuram referências na morte de Marilyn Monroe. E a BBC confirma ao mundo que David Kelly havia sido de facto a sua fonte.

3º: um jornalista pergunta a Blair, numa conferência de Imprensa visionada em todo o mundo a propósito da visita oficial ao Japão e ao lado do presidente Fujimori: “Tem sangue nas suas mãos, Mr. Blair?”. Silêncio.

E o inesperado tom da pergunta cria um dos momentos televisivos mais dramáticos dos últimos tempos. Blair parecia um menino perdido. O silêncio foi de abatimento, a cara transfigurada de decadência e fragilidade.

Até a maneira como Fujimori salva Blair, lançando o braço para o epílogo aperto de mão de fotografia, foi um desesperado remate na tragédia.

O “Caso Kelly” não ficou nem ficará por aqui. E além da mais grave crise política do “reinado” de Blair, que pode levar à derrocada do Governo, o debate reacendeu-se à volta dos “media”.

Pode um jornalista revelar a sua fonte, mesmo que ela já esteja morta? Mais do que isso: há de facto meios de Imprensa de credibilidade insuspeita?

O caso criou ondas sísmicas fora e dentro da BBC. Na redacção há vozes de discordância, o director-geral mantém que a “delação” foi correcta e conveniente, a administração tenta demarcar-se.

O público vê o caso pelos olhos de David Kelly e, ávido consumidor de escândalos que é, condena tanto a BBC como Tony Blair. Dois ídolos que caem. E como os países precisam de ídolos...

Para o jornalismo, é mais um prego no caixão. Entre os outros pregos – e contanto apenas os das últimas semanas, não é preciso ir muito longe – estão as acusações ao “Le Monde”, de influência política e ligações ocultas a outros meios (como o controlo das Publications de la Vie Catholique, um dos mais importantes grupos franceses de imprensa); estão as suspeitas de falsificação de uma reportagem transmitida pela Sky News durante a guerra contra o Iraque, com encenações de disparo de um míssil de cruzeiro; estão as acusações da Reuters à Bloomberg sobre violação de patentes; estão os plágios de um jornalista do “The New York Times”, que levaram à demissão da sua direcção.

E em Portugal, estamos a salvo de escândalos na Imprensa? Não. Pelo contrário, os escândalos da Casa Pia, as prisões preventivas de figuras célebres, as agitações nos meios judiciários têm sido tratadas nos jornais com uma insistência sem precedentes.

O terreno é perigoso. Sob a pressão dos editores, os jornalistas escavam junto a um precipício sem se preocuparem se estão do lado da terra que continuará firme ou do pedaço que pode derrocar.

O terreno em que se escava é pantanoso. O terreno em que se pode cair está minado.

Os jornais estão a lidar com poderes instituídos e, entre eles – o político, o mediático, o económico –, há um desejoso de apanhar alguém em falta: o poder judicial. Os jornalistas e os magistrados sempre tiveram relações tensas e qualquer falha será aproveitada para achincalhar o jornal faltoso.

E estão a ser criadas todas as condições para que possa haver um escândalo na imprensa portuguesa. Devem os jornais afrouxar o tratamento noticioso nesta questão? Não. Mas os editores devem ter a noção que não podem pisar o risco além do defensável. Há piranhas vorazes neste mar.

É inédito o processo judicial que o PS quer avançar contra os responsáveis pela notícia publicada no “Expresso” sobre o alegado conhecimento pelo Governo socialista da prática de crimes de abuso sexual na Casa Pia.

É um processo “contra desconhecidos” e, a avançar, pode ganhar contornos de pressão sobre revelação de fontes. O “Expresso”, estou certo, jamais as revelaria. Aliás, chamava-lhe um figuinho – seria uma oportunidade para mostrar a força perante poderosas pressões.

É assim que se têm criado os ídolos, muitos por narcísica auto-contemplação. E é assim, lá do alto, que têm caído muitos outros ídolos.

Por Pedro Guerreiro

Chefe de Redacção do Jornal de Negócios

Publicado no Jornal de Negócios

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