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21 de Novembro de 2006 às 13:59

Outros tempos

Simão os olhava através dos óculos grossos fundos, garrafais, escutando-lhes as certezas, definitivas, dissecantes do Mundo, dos sentires, dos valores.

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O velho escriba há muito que deixara de ter assento na mesa de editores, onde só morava agora gente "moderna", daqueles que já nascem ensinados.

Algo de estranho se passou, certamente, no Mundo na última década.

Antigamente, na Universidade , aprendia-se a pensar, a começar a andar na longa estrada do conhecimento. E quando a algum começo de lugar se chegava, maiores eram as dúvidas e a noção da imensa ignorância do caminhante.

Agora, produziu-se o milagre dos pães do saber. Com a mesma farinha enformam-se milagres intelectuais, que já sprintam mal começaram a andar.

Simão os olha, por detrás do anonimato ocular, a perorarem horas a fio, sobre leituras cruzadas, de "leads" de jornais e de blogs da internet, sem mundos e sem Mundo, onde cada "pensador" da moda amassa hamburgers de pensamentos citáveis (no dia seguinte) na imprensa diária.

Que os políticos são corruptos, ou arrogantes. Don Quixotes ou diletantes, ou, simplesmente, gente sem outro emprego melhor já todos os sabíamos.

É , há séculos, milénios, a "ordem natural das coisas".

O que o não é é confiar-se a decisão dos conteúdos e forma da informação a veicular, esse precioso órgão formativo, a uma faixa cada vez mais imberbe, árbitro e juiz de uma viagem da qual, na sua esmagadora maioria, pouco mais conhece do que a casa da partida.

Simão participa, humilde, naquelas reuniões de editores, de egos transbordantes dos recostos cadeirais.

Vai anotando os serviços a marcar, as notícias a alinhar, os meios a afectar.

Conhece-lhes os gestos. Os tiques de novo-riquismo decisório. Já nada o surpreende à excepção, talvez, da ilusão prevalecente, em torno daquela mesa, da solidez do cargo, quando a precaridade do exercício da função o torna cada vez mais fugaz. O exercício, pelo mesmo titular.

Todos os anos saiem das Universidades centenas de licenciados em comunicação social sem qualquer horizonte de empregabilidade a menos que prossiga a actual voracidade, economicista, de substituir o saber pelo mais barato. O conhecimento na vida pelo que basta para encher.

Os Homens verticais e de princípios pelos omniconcordantes. Os solidários pelos que nem pestanejam perante o espezinhar do mais próximo.

E em tal cenário futurista, mais do que provável, imaginem quem terá a função mais alvejada e sem qualquer hipótese de sustentação, na actual tendência?

Se agora já não vigoram o saber e a experiência como crivo de escolha imagine-se daqui a uns anos.

Simão ajusta os óculos garrafais. O debate, hoje, é sobre a "nova" urgência dos temas ambientais. Dos efeitos desastrosos que o aquecimento global irá trazer a todas as apropriações económicas do Mundo pelo Homem.

Simão vai anotando os serviços a marcar, as notícias a alinhar, os meios a afectar.

Há vários anos que os vinha alertando para tal configuração óbvia e incontornável, só que, para quem mora ainda na casa da partida do conhecimento e depende de leituras cruzadas, de "leads" de jornais e de blogs da internet e de flashes radiofónicos, esse era bebé por incubar.

Simão toma notas, diz que sim com a cabeça, ainda que agitando-se, por dentro, em negação. Mas isso é ele, ainda, dinossauro em vias de extinção, bípede com memória. Do tempo em que quanto mais se sabia, mais se sabia que nada se sabe.

Agora, cada vez mais, o tempo é outro.

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