Opinião
A lei do estômago
"São milhões de lulas à nossa volta!" – o pregão eleitoral empresta um toque gráfico "light" ao maior escrutínio democrático do Mundo lusófono.
A multidão à minha volta ginga, em tons vermelhos, do Partido do Trabalho brasileiro, enquanto aguarda pelo orador principal, no comício de São Bernardo do Campo, berço da carreira política do torneiro mecânico, elevado, pela força dos votos, à presidência da República.
Luís Inácio da Silva adoptou pelo caminho, o nome do maior molusco nadador entre os cefalópodes (Lula) e os sonhos de mais de 70 milhões de brasileiros que há quatro anos lhe confiaram o combate à pobreza, corrupção e imoralidades cada vez mais entranhadas no país.
Há quem diga, por aquelas bandas, que a definição de brasileiro é a de um "português feliz". E a verdade é que a facilidade de arredondar sorrisos nas caras dos nossos "irmãos do outro lado do Atlântico" nos reduz, comparativamente, a um cenário de gente bisonha, cinzenta e maldisposta.
"Milhões de lulas à nossa volta" – esse salto-mortal, ágil, do "brasileirismo", a "ganfar" a atenção do transeunte mais desatento. Como se aquela maré de gente se travestisse, num passe de mágica, numa caldeirada apetitosa. Irresistível. Dócil ao remexer da varinha do político-cozinheiro.
O facto é que num país de maioria de barrigas em deficit de aconchego, o arrazoado tecnocrata, colocado em banca pela oposição, pouco ou nada diz a quem das letras apenas conhece os pontos cardeais e, da política, sabe ser, por experiência, terreno movediço, onde, tarde ou cedo, não há moral, ética ou promessas que sobrevivam.
Que interessa o "mensalão" e o tal de "dossiergate", onde figuras da administração Lula (ou deste próximas) torpedearam os mesmos valores e rigores, que antes tinham protestado violados pelos seus antecessores e prometeram defender na sua guarda.
De Sul a Norte do país, acompanhei alternadamente as campanhas de Lula da Silva e do seu rival na primeira volta das presidenciais, Geraldo Alckmin, absorvendo a forma indelével como o país se divide ao meio, entre um e o outro, por critérios que nada têm a ver com os cenários convencionais, no dito Mundo Ocidental.
No nordeste pobre, sua região natal, o maior adversário a bater por Lula será a abstenção e não a capacidade de penetração do candidato da Social-democracia brasileira.
E isto porque– provam indicadores económicos independentes – o facto é que os rendimentos médios do terço mais pobre do país aumentaram anualmente 12 por cento durante a gestão Lula, ou seja, algo só atingido a nível mundial pela explosão económica chinesa.
Apesar disso, Alkmin conseguiu o feito, na primeira volta, de roubar a Lula mais de seis milhões dos votos obtidos por este em 2002, forçando-o a novo escrutínio nacional, marcado para o próximo dia 29.
Num país onde alienou o apoio da maioria da imprensa brasileira –- que há quatro anos o levara ao colo à presidência – pareceu inebriado pelo exercício do poder e não pelo seu apego a bebidas pesadas, como os seus detractores não se cansam de sublinhar.
Um Lula, deslumbrado, recusou-se assim a participar em qualquer frente a frente televisivo com os seus rivais na primeira volta, argumentando não estar para ser humilhado publicamente por atropelos morais e políticos que insiste terem sido cometidos à sua revelia.
E terá sido essa, segundo politólogos locais, a raiz do cartão amarelo mostrado pelo eleitorado que na reentrada em campo, para a segunda volta, percebeu o aviso e que tinha de descer do pedestal para continuar a ser encarado pelo "povão" como um dos seus e não mais um "novo rico" da política.
Para inúmeros analistas citados nos media brasileiros, Lula terá perdido o primeiro dos três debates televisivos previstos com Alkmin para esta segunda volta, mas o facto é que para a maioria dos eleitores , os tais de baixo nivel socioeconómico, a leitura foi bem outra.
Para os primeiros, a avaliação ponderou a solidez dos dois rivais sob o ponto de vista factual e argumentativo, um crivo que pouco ou nada diz – provam-no as posteriores sondagens (onde Lula recuperou o terreno perdido para Alkmin) – a um eleitorado que vive num quadro de prioridades e de referências distintos dos dos politólogos.
E se ainda alguém tivesse ilusões quanto ao "tropicalismo" do que está em questão nestas eleições, atente-se ao rol dos mais votados para o Congresso Federal, onde descobre, entre os mais votados, Paulo Maluf , um nome recorrente na corrupção política brasileira, e o costureiro Clodovil, estrela do mundo gay local que assume o caricato da sua eleição.
Logo após o anúncio do desfecho do escrutínio, Clodovil apareceu numa televisão brasileira a assumir que não tinha qualquer projecto político para o seu mandato, à semelhança de muitos dos outros deputados.
Quanto à marca que tencionava deixar, cumprido o mandato, Clodovil afirmou com a autoridade do terceiro deputado mais votado do Brasil com mais de meio milhão de votos; (quero) "deixar o parlamento... chiquérrimo!".