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15 de Novembro de 2006 às 13:59

De calças na mão

Um dos meus melhores amigos diplomatas tem uma forma bem "sui generis" de analisar o tipo de política externa de cada país; uma bitola muito pessoal, por ele descrita como o nível de aperto do cinto das calças.

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Sem cometer nenhuma inconfidência, pessoal ou de Estado, deixem-me explicitar um pouco mais; consoante os tempos, a firmeza ou os interesses deste ou daquele país e respectivo governo do momento, assiste-se a tudo, desde posições de calças depositadas nos fundilhos, ou, em extremo oposto, cinturadas nos limites do marialvismo bravio.

Eu bem sei que é uma leitura algo "gráfica", de contornos freudianos, mas que, pensando bem, não podia ser mais descodificadora de tanta coisa habitualmente sepultada em conveniências políticas e jogos de cintura.

Vejamos, por exemplo, a nossa postura "vis-à-vis" África e, em particular, os países africanos lusófonos.

Um dossier cada vez mais arredado dos focos mediáticos, por razões que variam da ignorância e da indiferença, cada vez maior, dos jornalistas portugueses relativamente ao continente, até ao cansaço dos leitores, ouvintes e telespectadores pelos insultos e atoardas atirados ao nosso país por líderes africanos.

E, no entanto, isto acontece em aparente descarrilamento e dissonância de afirmações sazonais, enaltecedoras do facto de termos sido todos, portugueses e luso-africanos, vítimas de um mesmo sistema político, fascista, e, supostamente, termos por isso afinidades redobradas após o 25 de Abril e sequentes independências africanas.

O facto é que Portugal e os portugueses continuam, passadas três décadas, a ser o álibi para todos os desvarios cometidos na África lusófona pós-independência, e terem de engolir cobras e lagartos por um passado onde, supostamente, éramos todos vítimas de um mesmo braço opressor.

E aí ganha especial acuidade o tal crivo de análise do meu amigo diplomata, postulado pela altura do cintar das calças.

Ora vejamos; depois do 25 de Abril , a nossa política externa tentou apagar a face de potência colonial transferindo o país para a bancada dos paladinos dos direitos humanos e das liberdades democráticas. Onde se supunha situarem-se os movimentos de libertação e toda a esquerda que contestou (e contesta) o autoritarismo de direita.

Uma viagem que rapidamente deixou a nu um duplo desapontamento; primeiro, nem os movimentos de libertação sabiam lidar ou estavam interessados nos tais direitos e liberdades (quando estes põem em cheque as suas opções governativas), competindo na respectiva violação com os seus antecessores, assim que subiam ao poder.

Segundo, o exercício governativo pela esquerda cada vez menos o é – de esquerda – em termos ideológicos, de solidariedade social e de promoção dos valores humanistas, abrindo antes alas ao mercearismo contabilístico, a um carreirismo que sacrifica o futuro das empresas ao acerto do saldo anual e prefere seguidores autistas à crítica inteligente construtiva.

Falados que estamos, da gestão doméstica, voltemos ao tal crivo do meu amigo, diplomata, para tentar entender o nosso "pas-de-deux" com África.

Seguremo-nos bem porque depois da etapa dos paladinos dos direitos humanos passou-se à fase do pragmatismo e dou-vos um exemplo; onde o actor principal é esse racista negro chamado Robert Mugabe, que se mantêm no poder esmagando a oposição e é, por isso mesmo, condenado por todo o Mundo Ocidental.

Só que a África negra, não aceita que um dos seus seja apontado a dedo e condenado pelos "brancos", mesmo estando a reduzir à miséria o seu país.

Cerrando fileiras, África prefere boicotar a Cimeira com a Europa a aceitar a rejeição por antigos colonos de um "lider libertador".

Na moderna linha "pragmática", a nossa política externa tem multiplicado esforços para servir de ponte entre uns e outros.

E se convencer a antiga potencial colonial rodesiana (a Inglaterra) a flexibilizar posições relativamente a Mugabe parece tarefa hercúlea, o osso mais duro-de-roer surge, em coerência, dos países nórdicos que outrora financiaram a luta anticolonial.

Para aqueles "estranhos povos loiros e de olhos azuis", a lógica que os levou há décadas a condenarem os seus pares europeus por abusarem os negros africanos, não lhes permite agora fechar os olhos às mesmas atrocidades cometidas por ditadores mais pigmentados.

Mas isso são aqueles estranhos nórdicos que, aos olhos do tal meu amigo diplomata, pouco ou nada percebem de África e muito menos do necessário "realismo". E o facto é que a tal Cimeira Europa-Africa, tudo o indica, irá mesmo acontecer, em Lisboa, durante a presidência portuguesa da UE ou enquanto Portugal integrar a respectiva "troika".

Nem que para isso tenhamos de continuar a aplaudir atoardas do presidente Armando Guebuza, saudando a transferência do controlo maioritário de Cahora Bassa para Maputo, há um mês, como o exalar do último fôlego colonial português em Moçambique.

Como se tivesse sido o sistema colonial quem impediu o governo moçambicano de englobar Cahora Bassa na onda de nacionalizações pós-Independência e aquele não tivesse quase sempre jogado com um pau de dois bicos na negociação das respectivas tarifas, com a sua vizinha África do Sul.

Voltando a utilizar o crivo do meu amigo, diplomata, vislumbrei as tais calças figurativas a um nível, "pragmático", dos fundilhos. Com os moçambicanos a esbofetearem-nos e nós a aplaudirmos, sorridentes, com a sensação de alívio, de quem se consolou perante a visão do copo meio cheio, ignorando o jarro meio vazio, de dignidade e de valores humanos.

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