Opinião
Os mercados regulam-se, a confiança não!
A regulação dos mercados é a forma mais aproximada de uma garantia que nenhum dos intervenientes faz batota. Se as regras do jogo não são cumpridas, não há jogo, ponto final.
João Gonçalves de Assunção, Abreu Cardigos & Associados
João Gonçalves de Assunção, Abreu Cardigos & Associados
Para um investidor apostar nos mercados accionistas tem de haver, no mínimo, a conjugação de três factores. O primeiro, claro, é a disponibilidade financeira para o fazer. Sem dinheiro não há investimento.
O segundo, a falta de outro tipo de produtos financeiros suficientemente atractivos que o levem a querer assumir o risco da possibilidade de perder todo o capital investido.
O terceiro, a confiança de que, se algo correr mal, seja possível recorrer a uma entidade que regule esses mercados.
A regulação dos mercados é a forma mais aproximada de uma garantia que nenhum dos intervenientes faz batota. Se as regras do jogo não são cumpridas, não há jogo, ponto final, parágrafo.
Nestes tempos de auditorias problemáticas e práticas contabilísticas pouco recomendáveis, desde o «escândalo Enron» no final do ano passado que as fraudes têm vindo a suceder-se.
Grandes empresas como a Worldcom, a Merck, a American Online Internet ou a Xerox têm vindo a anunciar lucros e volumes de negócios inflacionados em milhares de milhões de euros.
Medidas para impedir que este tipo de situações ocorram impõem-se com toda urgência de modo a assegurar a confiança e transparência necessárias ao bom funcionamento dos mercados de capitais.
Ainda há bem pouco tempo a IAS (International Accounting Standards, ou Padrões de Contabilidade Internacional) revelou que irá passar a ser bastante mais severa, forçando as empresas a considerarem, já a partir de 1 Janeiro de 2004, as «stock options» que concedem aos seus empregados como despesas, o que irá criar uma forte pressão sobre os resultados apresentados pelas empresas que adoptam este sistema de incentivos.
O facto de não existirem regras contabilísticas universalmente aplicáveis à apresentação dos resultados das empresas não contribui também para a transparência dos mercados.
Veja-se a título de exemplo, o Banco Comercial Português [BCP] e o Banco Espírito Santo que, sendo entidades cotadas na New York Stock Exchange, de acordo com as regras da Securities Exchange Commission (SEC), aí registaram o seu exercício relativo ao ano de 2001: o primeiro, que de acordo com as regras contabilísticas aplicadas em Portugal apresenta um resultado líquido consolidado de 571, 6 milhões de euros, de acordo com as normas contabilísticas aplicadas nos EUA apresenta um resultado líquido consolidado negativo de 1,44 mil milhões de euros.
Por seu turno o BES [BESNN] apresenta um resultado líquido consolidado de 197,7 milhões de euros em Portugal ao passo que nos EUA este valor apresenta um resultado negativo de 20,02 milhões de euros. Uma diferença de 1,44 mil milhões de euros num caso e de 217,73 milhões de euros no outro nas respectivas apresentações de contas (?).
Em Portugal, os administradores, gerentes e directores de uma sociedade comercial estão, em termos gerais, obrigados a um especial dever de diligência. Prevê o Artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais que estes devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores.
Por outro lado, sob a epígrafe «qualidade da informação» determina o Artigo 7.º do Código de Valores Mobiliários que toda a informação respeitante a valores mobiliários, (...) e mercado de valores mobiliários deverá ser completa, verdadeira, actual, clara, objectiva e lícita.
Diversas outras disposições legais regulam ainda a responsabilidade civil e criminal das pessoas que compõe as administrações e conselhos fiscais de sociedades, tendo a doutrina e jurisprudência já largamente se debruçado sobre o tema.
Num estudo elaborado pela Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) junto de 102 empresas nacionais, 34 apresentaram reservas nas contas de 2001, muito embora não havendo quaisquer opiniões adversas dos auditores.
Em Portugal, a CMVM, ao contrário de outros reguladores, tem o direito de fiscalizar o trabalho dos auditores, não o tendo efectuado em todas as contas analisadas. Apesar de tais situações serem pontuais, e não constituírem «situações graves» que possam ser considerados preocupantes em termos de veracidade, a existência de reservas às contas não deixa de ser merecedora de atenção e vigilância, no âmbito dos poderes supervisão atribuídos à CMVM (Artigos 358.º e ss. do Código de Valores Mobiliários).
A situação actual, não sendo de alarme no actual tecido empresarial português, não deixa de exigir a maior atenção. Bem vistas as coisas, a situação não beneficiará ninguém. Não é só o investidor que sai lesado.
As próprias empresas põem em risco o crescimento do mercado de capitais como importante fonte de financiamento para os seus investimentos e sobrevivência, em resultado do descrédito e quebra de confiança do investidor nos mercados accionistas, que passa a apostar as suas poupanças e investimento noutro tipo de activos.
João Gonçalves de Assunção
Advogado, Abreu Cardigos & Associados
joao.g.assuncao@abreucardigos.com