Opinião
O obituário prematuro da Ronda de Doha
A Ronda de Doha, a primeira negociação comercial multilateral incluída na Organização Mundial do Comércio (OMC), está num momento crucial.
Agora, no seu décimo ano, depois de tanto ter sido negociado, as conversações precisam de um empurrão político final, para que Doha – e, daí, a OMC – não desapareçam do radar mundial.
Na realidade, o perigo já é real: há um ano, quando estive em Genebra, fiquei no luxuoso Mandarin Oriental, onde perguntei ao recepcionista a distância para chegar à OMC. Olhou para mim e respondeu-me: “A Organização Mundial do Comércio é uma agência de viagens?”
Os principais Chefes de Estado já se aperceberam da ameaça da irrelevância e já se comprometeram a “arregaçar as mangas”. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, a chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente da Indonésia, Susilo Bambang Yudhoyono, apoiaram inequivocamente a recomendação do Grupo de Especialistas de Alto Nível para o Comércio, liderado por mim e por Peter Sutherland, que indica que devemos abandonar a Ronda de Doha, se esta não for concluída antes do final do corrente ano.
A nossa ideia era a de que, com o cenário de uma iminente suspensão a concentrar as atenções, o prazo-limite e o esperado fim da Ronda de Doha iriam estimular os líderes mundiais a completar os últimos quilómetros da maratona. (A analogia não podia ser mais apropriada, dado que o director-geral da OMC, Pascal Lamy, que brilhantemente tem mantido o processo em andamento, é um maratonista.)
Mas com estes esforços a ganharem impulso, o “Financial Times”, que era um acérrimo defensor do comércio livre multilateral, lançou uma bomba sobre Doha, congratulando-se até que, em 2008 (quando um encontro ministerial não chegou a conclusões), tinha “defendido que os líderes deveriam admitir que as negociações estavam mortas”. Mas se os cépticos se esqueceram da famosa resposta de Mark Twain ao equívoco do seu obituário – “as notícias da minha morte são manifestamente exageradas” –, os negociantes, que continuaram a trabalhar desde aí, parecem-se com as “almas mortas” de Gogol?
O “Financial Times” recomenda criar um plano B aqui e agora, o que iria danificar os esforços políticos para concluir a Ronda de Doha. Apesar dos clichés retóricos que pedem que “os ministros desaprendam os hábitos arraigados e se centrem na substância e não na retórica” e que solicitam “associações empresariais comprometidas com o pormenor granular do que querem as companhias”, este plano B iria fortalecer as iniciativas de comércio bilateral e regional. Isso iria desviar a energia e a atenção da Doha e da OMC. A ironia é que a proliferação de tais acordos comerciais preferenciais é normalmente justificada devido à ausência de progresso nas conversações de Doha. Nunca as causas e as consequências foram tão radicalmente invertidas nos argumentos sobre a política comercial.
Tem-se tornado cada vez mais óbvio que tais acordos preferenciais são aquilo a que chamo “térmitas no sistema comercial”. De facto, têm-se juntado evidências de que eles promovem uma diversificação perigosa do comércio, ao aumentarem a discriminação contra não-membros, através do uso diferenciado de acções anti-dumping. O recente trabalho dos economistas Tom Prusa e Robert Teh produziu provas convincentes de registos de anti-dumping, que indica que estes diminuíram cerca de 33% a 55% dentro dos membros desses acordos, ao passo que subiram, contra aqueles que não estão envolvidos, entre 10% a 30%.
Mais importante que isso, estes entendimentos são usados por potências hegemónicas para impingir, aos parceiros menos poderosos, exigências que não estão relacionadas com o comércio, mas que são desejadas por grupos de pressão nacionais, por vezes, de uma forma marcadamente assimétrica. Daí que o Peru tenha visto a sua legislação laboral praticamente reescrita por elementos do Congresso dos Estados Unidos em dívida para com os sindicatos norte-americanos, antes de o acordo comercial preferencial entre os EUA e o Peru estar concluído.
Da mesma forma, Claude Barfield mostrou como a Colômbia foi intimidada, de forma a que considerasse crime (com pena de prisão com limite máximo de cinco anos) os actos que “colocam em causa o direito de organizar e negociar colectivamente”. A Colômbia tem, igualmente, de aprovar uma lei que ordena a prisão a qualquer pessoa que “ofereça um pacto colectivo a trabalhadores não sindicalizados cujas condições sejam superiores às dos trabalhadores sindicalizados”. Irá a administração norte-americana começar a lançar acusações criminais contra o governador de Wisconsin, ou muitos outros líderes republicanos, que estão precisamente a fazer aquilo que o governo colombiano está a ser obrigado a não fazer?
Tal superiorização é típica do que acontece nos acordos comerciais preferenciais liderados por potências hegemónicas. Ao contrário da OMC, onde os países mais fortes, como a Índia (que pediu à União Europeia para retirar todas as medidas não relacionadas com o comércio do acordo proposto) e o Brasil, não podem ser tão intimidados. O perigo é que a superiorização vai conduzir a sociedade civil e os eleitores dos países democráticos em desenvolvimento a reagirem contra o facto de estarem sempre à disposição das potências. E vão querer abandonar o comércio livre, com base na ideia de que tal abertura é pouco mais do que neocolonialismo.
Jagdish Bhagwati é professor de Economia e Direito na Universidade de Columbia e membro da secção de Economia Internacional no Council on Foreign Relations (“Conselho para as Relações Externas”). É autor de Termites in the Trading System: How Preferential Agreements Undermine Free Trade (Oxford, 2009).
Copyright: Project Syndicate, 2011.
www.project-syndicate.org
For a podcast of this commentary in English, please use this link:
http://media.blubrry.com/ps/media.libsyn.com/media/ps/bhagwati12.mp3
Na realidade, o perigo já é real: há um ano, quando estive em Genebra, fiquei no luxuoso Mandarin Oriental, onde perguntei ao recepcionista a distância para chegar à OMC. Olhou para mim e respondeu-me: “A Organização Mundial do Comércio é uma agência de viagens?”
A nossa ideia era a de que, com o cenário de uma iminente suspensão a concentrar as atenções, o prazo-limite e o esperado fim da Ronda de Doha iriam estimular os líderes mundiais a completar os últimos quilómetros da maratona. (A analogia não podia ser mais apropriada, dado que o director-geral da OMC, Pascal Lamy, que brilhantemente tem mantido o processo em andamento, é um maratonista.)
Mas com estes esforços a ganharem impulso, o “Financial Times”, que era um acérrimo defensor do comércio livre multilateral, lançou uma bomba sobre Doha, congratulando-se até que, em 2008 (quando um encontro ministerial não chegou a conclusões), tinha “defendido que os líderes deveriam admitir que as negociações estavam mortas”. Mas se os cépticos se esqueceram da famosa resposta de Mark Twain ao equívoco do seu obituário – “as notícias da minha morte são manifestamente exageradas” –, os negociantes, que continuaram a trabalhar desde aí, parecem-se com as “almas mortas” de Gogol?
O “Financial Times” recomenda criar um plano B aqui e agora, o que iria danificar os esforços políticos para concluir a Ronda de Doha. Apesar dos clichés retóricos que pedem que “os ministros desaprendam os hábitos arraigados e se centrem na substância e não na retórica” e que solicitam “associações empresariais comprometidas com o pormenor granular do que querem as companhias”, este plano B iria fortalecer as iniciativas de comércio bilateral e regional. Isso iria desviar a energia e a atenção da Doha e da OMC. A ironia é que a proliferação de tais acordos comerciais preferenciais é normalmente justificada devido à ausência de progresso nas conversações de Doha. Nunca as causas e as consequências foram tão radicalmente invertidas nos argumentos sobre a política comercial.
Tem-se tornado cada vez mais óbvio que tais acordos preferenciais são aquilo a que chamo “térmitas no sistema comercial”. De facto, têm-se juntado evidências de que eles promovem uma diversificação perigosa do comércio, ao aumentarem a discriminação contra não-membros, através do uso diferenciado de acções anti-dumping. O recente trabalho dos economistas Tom Prusa e Robert Teh produziu provas convincentes de registos de anti-dumping, que indica que estes diminuíram cerca de 33% a 55% dentro dos membros desses acordos, ao passo que subiram, contra aqueles que não estão envolvidos, entre 10% a 30%.
Mais importante que isso, estes entendimentos são usados por potências hegemónicas para impingir, aos parceiros menos poderosos, exigências que não estão relacionadas com o comércio, mas que são desejadas por grupos de pressão nacionais, por vezes, de uma forma marcadamente assimétrica. Daí que o Peru tenha visto a sua legislação laboral praticamente reescrita por elementos do Congresso dos Estados Unidos em dívida para com os sindicatos norte-americanos, antes de o acordo comercial preferencial entre os EUA e o Peru estar concluído.
Da mesma forma, Claude Barfield mostrou como a Colômbia foi intimidada, de forma a que considerasse crime (com pena de prisão com limite máximo de cinco anos) os actos que “colocam em causa o direito de organizar e negociar colectivamente”. A Colômbia tem, igualmente, de aprovar uma lei que ordena a prisão a qualquer pessoa que “ofereça um pacto colectivo a trabalhadores não sindicalizados cujas condições sejam superiores às dos trabalhadores sindicalizados”. Irá a administração norte-americana começar a lançar acusações criminais contra o governador de Wisconsin, ou muitos outros líderes republicanos, que estão precisamente a fazer aquilo que o governo colombiano está a ser obrigado a não fazer?
Tal superiorização é típica do que acontece nos acordos comerciais preferenciais liderados por potências hegemónicas. Ao contrário da OMC, onde os países mais fortes, como a Índia (que pediu à União Europeia para retirar todas as medidas não relacionadas com o comércio do acordo proposto) e o Brasil, não podem ser tão intimidados. O perigo é que a superiorização vai conduzir a sociedade civil e os eleitores dos países democráticos em desenvolvimento a reagirem contra o facto de estarem sempre à disposição das potências. E vão querer abandonar o comércio livre, com base na ideia de que tal abertura é pouco mais do que neocolonialismo.
Jagdish Bhagwati é professor de Economia e Direito na Universidade de Columbia e membro da secção de Economia Internacional no Council on Foreign Relations (“Conselho para as Relações Externas”). É autor de Termites in the Trading System: How Preferential Agreements Undermine Free Trade (Oxford, 2009).
Copyright: Project Syndicate, 2011.
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For a podcast of this commentary in English, please use this link:
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