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Opinião
02 de Junho de 2011 às 15:44

O obituário prematuro da Ronda de Doha

A Ronda de Doha, a primeira negociação comercial multilateral incluída na Organização Mundial do Comércio (OMC), está num momento crucial.

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Agora, no seu décimo ano, depois de tanto ter sido negociado, as conversações precisam de um empurrão político final, para que Doha – e, daí, a OMC – não desapareçam do radar mundial.

Na realidade, o perigo já é real: há um ano, quando estive em Genebra, fiquei no luxuoso Mandarin Oriental, onde perguntei ao recepcionista a distância para chegar à OMC. Olhou para mim e respondeu-me: “A Organização Mundial do Comércio é uma agência de viagens?”

Os principais Chefes de Estado já se aperceberam da ameaça da irrelevância e já se comprometeram a “arregaçar as mangas”. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, a chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente da Indonésia, Susilo Bambang Yudhoyono, apoiaram inequivocamente a recomendação do Grupo de Especialistas de Alto Nível para o Comércio, liderado por mim e por Peter Sutherland, que indica que devemos abandonar a Ronda de Doha, se esta não for concluída antes do final do corrente ano.

A nossa ideia era a de que, com o cenário de uma iminente suspensão a concentrar as atenções, o prazo-limite e o esperado fim da Ronda de Doha iriam estimular os líderes mundiais a completar os últimos quilómetros da maratona. (A analogia não podia ser mais apropriada, dado que o director-geral da OMC, Pascal Lamy, que brilhantemente tem mantido o processo em andamento, é um maratonista.)

Mas com estes esforços a ganharem impulso, o “Financial Times”, que era um acérrimo defensor do comércio livre multilateral, lançou uma bomba sobre Doha, congratulando-se até que, em 2008 (quando um encontro ministerial não chegou a conclusões), tinha “defendido que os líderes deveriam admitir que as negociações estavam mortas”. Mas se os cépticos se esqueceram da famosa resposta de Mark Twain ao equívoco do seu obituário – “as notícias da minha morte são manifestamente exageradas” –, os negociantes, que continuaram a trabalhar desde aí, parecem-se com as “almas mortas” de Gogol?

O “Financial Times” recomenda criar um plano B aqui e agora, o que iria danificar os esforços políticos para concluir a Ronda de Doha. Apesar dos clichés retóricos que pedem que “os ministros desaprendam os hábitos arraigados e se centrem na substância e não na retórica” e que solicitam “associações empresariais comprometidas com o pormenor granular do que querem as companhias”, este plano B iria fortalecer as iniciativas de comércio bilateral e regional. Isso iria desviar a energia e a atenção da Doha e da OMC. A ironia é que a proliferação de tais acordos comerciais preferenciais é normalmente justificada devido à ausência de progresso nas conversações de Doha. Nunca as causas e as consequências foram tão radicalmente invertidas nos argumentos sobre a política comercial.

Tem-se tornado cada vez mais óbvio que tais acordos preferenciais são aquilo a que chamo “térmitas no sistema comercial”. De facto, têm-se juntado evidências de que eles promovem uma diversificação perigosa do comércio, ao aumentarem a discriminação contra não-membros, através do uso diferenciado de acções anti-dumping. O recente trabalho dos economistas Tom Prusa e Robert Teh produziu provas convincentes de registos de anti-dumping, que indica que estes diminuíram cerca de 33% a 55% dentro dos membros desses acordos, ao passo que subiram, contra aqueles que não estão envolvidos, entre 10% a 30%.

Mais importante que isso, estes entendimentos são usados por potências hegemónicas para impingir, aos parceiros menos poderosos, exigências que não estão relacionadas com o comércio, mas que são desejadas por grupos de pressão nacionais, por vezes, de uma forma marcadamente assimétrica. Daí que o Peru tenha visto a sua legislação laboral praticamente reescrita por elementos do Congresso dos Estados Unidos em dívida para com os sindicatos norte-americanos, antes de o acordo comercial preferencial entre os EUA e o Peru estar concluído.

Da mesma forma, Claude Barfield mostrou como a Colômbia foi intimidada, de forma a que considerasse crime (com pena de prisão com limite máximo de cinco anos) os actos que “colocam em causa o direito de organizar e negociar colectivamente”. A Colômbia tem, igualmente, de aprovar uma lei que ordena a prisão a qualquer pessoa que “ofereça um pacto colectivo a trabalhadores não sindicalizados cujas condições sejam superiores às dos trabalhadores sindicalizados”. Irá a administração norte-americana começar a lançar acusações criminais contra o governador de Wisconsin, ou muitos outros líderes republicanos, que estão precisamente a fazer aquilo que o governo colombiano está a ser obrigado a não fazer?

Tal superiorização é típica do que acontece nos acordos comerciais preferenciais liderados por potências hegemónicas. Ao contrário da OMC, onde os países mais fortes, como a Índia (que pediu à União Europeia para retirar todas as medidas não relacionadas com o comércio do acordo proposto) e o Brasil, não podem ser tão intimidados. O perigo é que a superiorização vai conduzir a sociedade civil e os eleitores dos países democráticos em desenvolvimento a reagirem contra o facto de estarem sempre à disposição das potências. E vão querer abandonar o comércio livre, com base na ideia de que tal abertura é pouco mais do que neocolonialismo.


Jagdish Bhagwati é professor de Economia e Direito na Universidade de Columbia e membro da secção de Economia Internacional no Council on Foreign Relations (“Conselho para as Relações Externas”). É autor de Termites in the Trading System: How Preferential Agreements Undermine Free Trade (Oxford, 2009).


Copyright: Project Syndicate, 2011.
www.project-syndicate.org


For a podcast of this commentary in English, please use this link:
http://media.blubrry.com/ps/media.libsyn.com/media/ps/bhagwati12.mp3




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