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24 de Junho de 2012 às 23:30

As pernas partidas do comércio mundial

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A Ronda de Doha, a mais recente fase das negociações comerciais multilaterais, fracassou em Novembro de 2011, depois de 10 anos de conversações, apesar dos esforços oficiais de muitos países, incluindo do Reino Unido e da Alemanha, e de quase todos os actuais eminentes académicos na matéria. Ainda que os responsáveis comerciais nos EUA e na União Europeia culpem as exigências excessivas dos países em desenvolvimento do G-22 pelo fracasso das negociações anteriores, levadas a cabo em Cancun em 2003, existe um consenso geral de que, desta vez, foram os Estados Unidos que arruinaram as conversações, com injustificadas (e inflexíveis) exigências. E agora, o que se faz?

A incapacidade para alcançar uma liberalização comercial multilateral, concluindo a Ronda de Doha, significa que o mundo perdeu os benefícios resultantes do comércio que tinham sido trazidos por um tratado bem sucedido. Mas dificilmente as coisas terminam por aqui: o fracasso de Doha acabará por travar a liberalização comercial multilateral nos próximos anos.

Naturalmente, as negociações comerciais multilaterais são uma das três pernas sobre as quais a Organização Mundial do Comércio (OMC) assenta. Mas partir essa perna afecta de forma adversa o funcionamento das restantes duas: a autoridade da OMC para formular normas e o seu mecanismo de resolução de conflitos. Também a esse respeito os custos podem ser elevados.

Até agora, os acordos comerciais preferenciais (ACP) entre pequenos grupos de países coexistiam com as rondas de liberalização comercial multilateral e não discriminatória. Consequentemente, as normas que regem o comércio, como por exemplo os direitos contra a concorrência desleal e os direitos compensatórios das subvenções ilegais, eram competência da OMC e dos ACP, mas quando havia um conflito prevaleciam as da OMC, pois conferiam direitos aplicáveis a todos os seus membros, ao passo que os direitos correspondentes aos ACP apenas se aplicavam aos seus escassos membros.

Assim, enquanto os poderosos países "hegemónicos", como os Estados Unidos, conseguiam impor as suas próprias normas a parceiros mais débeis nos ACP, para cuja proliferação contribuíram, as grandes economias em ascensão – como a Índia, o Brasil e a África do Sul – insistiam em rejeitar essas exigências quando participavam em rondas comerciais multilaterais como a de Doha.

No entanto, agora, numa altura em que as rondas comerciais multilaterais e as normas gerais do sistema são coisa do passado, os ACP são a única opção disponível e os modelos estabelecidos pelas potências hegemónicas nos tratados comerciais desiguais com países economicamente mais débeis estão a levar cada vez mais a sua avante. Com efeito, os modelos não se limitam agora às questões comerciais tradicionais (como, por exemplo, a protecção da agricultura), abarcando um grande número de sectores não relacionados com o comércio, como as normas laborais, as normas ambientais, as políticas em matéria de expropriações e a capacidade para impor controlos sobre as contas de capital nas crises financeiras.

A guerra-relâmpago do eufemismo em matéria de relações públicas, liderada pelos EUA, já começou, pois a representante comercial adjunta dos Estados Unidos, Wendy Cutler, classificou o último ACP, a Associação Transoceânica, como um acordo "excelente". Outros responsáveis norte-americanos costumavam chamar aos ACP "acordos comerciais para o século XXI". Quem poderia ser contra o século XXI?

O preocupante é a forma como alguns economistas da área comercial, em Genebra e em Washington, capitularam perante tal propaganda, considerando a capitulação por parte da OMC como uma forma de "salvar" e de remodelar a organização. A Organização Mundial do Comércio, como uma aldeia durante a guerra do Vietname, deve ser destruída para ser salva.

Lamentavelmente, o insidioso ataque à segunda perna da OMC estende-se também à terceira, que é o mecanismo de resolução de conflitos. Este é o maior motivo de orgulho da OMC: é o único mecanismo imparcial e vinculativo para mediar conflitos e impor o cumprimento das obrigações contratuais formuladas pela OMC e aceites pelos seus membros. Concede a todos os seus membros, grandes ou pequenos, uma plataforma e uma voz.

No entanto, uma vez criados os mecanismos de resolução de diferendos baseados nos ACP, a arbitragem dos conflitos reflectirá assimetrias de poder, beneficiando o parceiro comercial mais forte. Além disso, os países terceiros terão pouca margem para contribuírem para os mecanismos de resolução de diferendos baseados nos ACP, pelo que os seus interesses podem muito bem ser prejudicados pela forma como a arbitragem for estruturada.

Atendendo a que os EUA abandonaram qualquer pretensão de liderança no comércio mundial, cabe às principais economias emergentes e aos países desenvolvidos com pontos de vista similares criarem o seu próprio modelo – um modelo que atenda aos objectivos comerciais e descarte o que os grupos de pressão com interesses especiais em países hegemónicos, como os EUA, tentam impor aos ACP. Foi precisamente isso que a Índia fez com a União Europeia, que está agora a eliminar esses elementos da sua proposta de ACP.

Outros países – como o Brasil, África do Sul e China, entre as maiores economias em ascensão, e o Japão e Austrália entre os países desenvolvidos – devem apoiar também esses acordos comerciais preferenciais "livres de obstáculos". Esse poderá ser precisamente o elemento adequado de rejeição da ascensão dos ACP cujo principal objectivo seja servir apenas interesses hegemónicos – talvez seja o suficiente para conseguir que a abordagem multilateral volte a estar na ordem do dia.

Jagdish Bhagwati, Professor de Economia e Direito na Universidade de Columbia e conselheiro sénior em Economia Internacional no Conselho das Relações Externas, foi o co-presidente do Grupo de Especialistas de Alto Nível no Sector Comercial, nomeado pelos governos britânico, alemão, indonésio e turco.

Direitos de autor: Project Syndicate, 2012.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro


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