Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
14 de Março de 2005 às 13:59

O «gosto a rolha» e o choque tecnológico

A descoberta da eliminação do «gosto a rolha» é bom exemplo do choque tecnológico de que o país precisa e deveria constituir uma referência para a definição de prioridades em matéria de políticas públicas de promoção da investigação e desenvolvimento.

  • ...

Em ambiente de «choque tecnológico», como é aquele que se vive actualmente, é impossível ficar indiferente à notícia que veio a público a semana passada sobre a descoberta de um processo inovador para a eliminação do conhecido «gosto a rolha» que afecta a utilização da cortiça na produção de vedantes para vinhos e outras bebidas. Esta notícia é tanto mais relevante quanto se constata que a descoberta é um resultado das actividades de investigação aplicada desenvolvidas pelo Centro Tecnológico da Cortiça (CTCor), uma instituição ligada ao mundo empresarial do sector e vocacionada, precisamente, para a exploração de novas potencialidades no tratamento e aplicações da cortiça e seus derivados.

Talvez, mesmo, mais importante do que a descoberta em si é a reflexão que ela imediatamente suscita sobre aquilo que poderá e deverá ser feito no sentido de gerar as dinâmicas de transformação estrutural da economia portuguesa que permitam recuperar de forma sustentada o processo de crescimento e de convergência com as suas congéneres europeias.

Em primeiro lugar, é importante salientar o facto de a descoberta ocorrer num dos chamados sectores «tradicionais», pondo em causa a ideia de que estes sectores estão esgotados no seu potencial de inovação e de criação de riqueza bem como de impulso a processos de modernização da economia portuguesa.

Muito pelo contrário, no contexto actual da globalização económica e de afirmação de economias de escala, a procura de especificidade, sobretudo no caso de uma pequena economia periférica, como é a nossa, a aposta na modernização e na inovação de processos e produtos de sectores que, em muitos casos, representam séculos de saberes e de experiências específicas acumuladas, pode ser um ponto de partida para a introdução de uma dinâmica mais ampla de modernização tecnológica que venha a generalizar-se ao conjunto da economia portuguesa.

Como é óbvio, a aposta na modernização e na valorização do potencial competitivo dos sectores tradicionais não é contraditória com a preocupação de introduzir outras dinâmicas que privilegiem a transformação estrutural e a criação de outros espaços económicos para a produção e sustentação de novas vantagens competitivas. As duas lógicas são complementares e, uma vez em marcha, produzirão, seguramente, sinergias que não deixarão de produzir efeitos positivos em termos da qualificação, diversificação e subida na cadeia de valor das produções nacionais.

Em segundo lugar, é importante reconhecer o potencial de inovação que os centros tecnológicos ligados às empresas e aos sectores produtivos representam no contexto do sistema científico e tecnológico nacional e, também, a necessidade de olhar com outros olhos para o papel da investigação aplicada. Seria óptimo que outras descobertas do género pudessem ocorrer noutros sectores fundamentais da economia portuguesa e que elas se traduzissem, também, na qualificação e valorização dos produtos portugueses e na aquisição de novas vantagens competitivas. E, nesta perspectiva justifica-se plenamente o esforço no sentido de reforçar os laços do sistema de investigação universitário com a actividade económica, revalorizando a investigação aplicada de âmbito académico e criando, simultaneamente, mecanismos facilitadores e incentivadores da mobilidade de investigadores entre as instituições académicas e empresariais e a realização de projectos integrados de investigação baseados em necessidades reais de modernização produtiva e de aquisição de novas capacidades competitivas empresariais.

Em terceiro lugar, é de referir o potencial efeito de acréscimo de atractividade que esta e outras descobertas da mesma natureza podem gerar na economia portuguesa face ao exterior. O país revela capacidade de inovação e de sustentação da competitividade sectorial e isso poderá gerar novos investimentos internos e externos, orientados para a valorização económica da descoberta e para o aproveitamento de novas oportunidades de negócios. O reforço dos factores de competitividade específica não produz apenas resultados no plano da afirmação externa das empresas ou das produções já instaladas mas tem igualmente efeitos no plano da criação de melhores condições para a fixação e atracção de capitais externos, particularmente em contextos de exacerbação da concorrência internacional entre países, como é aquele que se vive actualmente.

Por fim, é de referir os efeitos que uma inovação desta natureza, no sector da cortiça, produz sobre as condições de valorização dos produtos dos sectores que constituem seus beneficiários directos e indirectos a montante, designadamente o sector do vinho - outro sector importante do ponto de vista da valorização das especificidades portuguesas -, designadamente em termos de promoção de exportações e de penetração em mercados mais exigentes e de maior poder de compra. A inovação tecnológica deve ser assumida em todas as suas dimensões e uma delas é sem dúvida a capacidade de potenciar e integrar as inovações localizadas em dinâmicas mais vastas de inovação sectorial e de «cluster» e de as transformar em factores de promoção externa da qualidade e imagem dos nossos produtos.

A descoberta da eliminação do «gosto a rolha» é bom exemplo do choque tecnológico de que o país precisa e deveria constituir uma referência para a definição de prioridades em matéria de políticas públicas de promoção da investigação e desenvolvimento. Mais do que prosseguir objectivos de aumento da despesa pública e privada em ciência e tecnologia, será fundamental apostar na multiplicação de projectos de investigação aplicada, baseados em necessidades concretas de promoção da competitividade económica e empresarial, no incentivo à formação de «clusters» entre centros tecnológicos sectoriais e centros de investigação universitários e na criação de sistemas de incentivos económicos e financeiros às empresas que privilegiem o desempenho na qualidade e inovação dos produtos e na produção de valor acrescentado.

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio