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António Mendonça amend@iseg.utl.pt 03 de Julho de 2007 às 13:59

A Proposta de Lei do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior

Voltamos nesta coluna ao tema do novo Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), tendo em conta a recente aprovação em Conselho de Ministros da Proposta de Lei que o configura e o seu envio à Assembleia da República para discussão e vota

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Na leitura anterior, necessariamente provisória e limitada, tendo em conta o estado "em construção" dos documentos conhecidos publicamente, havíamos chamado a atenção para três aspectos centrais que nos pareciam da maior relevância para o desenvolvimento do ensino superior em Portugal: a aplicação de critérios de exigência comuns para o ensino público e privado, a mudança radical do "modelo de governance" das instituições e a abertura à sociedade.

São apreciações que mantemos e reforçamos após a leitura da recente proposta de lei. No entanto, tendo em conta a evolução do documento e as repercussões que entretanto foram vindo a público sobre algumas das suas disposições mais controversas, julgamos que se justificam algumas observações adicionais.

Uma questão prévia deve ser colocada relativamente à filosofia geral que enforma o documento. Trata-se de uma iniciativa política e legislativa que visa responder a uma incapacidade estrutural das instituições de ensino superior de se auto-reformarem e de se adaptarem ao novo contexto de exigências académicas e de relacionamento com a sociedade ou, pelo contrário, tem como referência e preocupação central a criação de condições para que as forças e as instituições mais dinâmicas possam consolidar e aprofundar as experiências inovadoras já em curso e desenvolver plenamente o seu potencial de criação, transmissão e difusão de conhecimento científico e tecnológico?

Como é óbvio não estamos em posição de responder directamente a esta questão. Mas, tendo conhecimento do que tem sido a evolução de muitas das instituições de ensino superior nas duas últimas décadas e os progressos assinaláveis que têm registado no plano do seu reconhecimento interno e internacional atrevemo-nos a considerar que a nova legislação visa libertar as instituições de ensino superior dos constrangimentos legais, administrativos, financeiros e outros com que se têm confrontado no exercício da sua missão e objectivos e abrir espaço para que as forças mais dinâmicas se afirmem e funcionem como "benchmarking" para o conjunto do sistema. Lendo o articulado da proposta de lei é visível a convergência com muitas das preocupações já manifestadas por diversas instituições ao longo dos últimos anos e, o que talvez seja mais significativo, a coincidência com muitas das melhores práticas já em curso e que têm permitido a essas mesmas instituições inovarem e progredirem, não obstante o quadro de restrições com que se confrontam.

Uma segunda questão prévia, que se liga com a anterior, tem a ver com a atenção que é dada na proposta de lei às condições para a criação, transformação, cisão, fusão e extinção de instituições e de unidades orgânicas, designadamente no âmbito da opção pelo modelo fundacional. Trata-se de uma preocupação geral com a criação de condições para uma racionalização e aumento de eficácia do sistema de ensino superior no seu conjunto e das suas diversas unidades, em particular, ou, antes, um tiro de partida para um processo de separação de algumas unidades orgânicas e de eventual futura recomposição institucional, separando uma "nata" à custa do emagrecimento geral do do "leite" científico e pedagógico das instituições de ensino superior?

Como igualmente é óbvio, não estamos, também, em condições de dar resposta a esta questão. E, francamente, não pensamos que seja a questão mais relevante no contexto das profundas transformações que a proposta de lei, uma vez aprovada, irá provocar em todo o sistema de ensino superior. A preocupação das diversas instituições e dos seus responsáveis deve ir no sentido de aproveitar a oportunidade da implantação do novo regime jurídico para procederem a uma profunda análise do seu trabalho, dos seus métodos de gestão e modelo organizacional e procederem, em conformidade, aos ajustamentos organizacionais e institucionais que se revelarem ajustados à valorização e difusão interna das melhores práticas, à criação de sinergias entre as diversas competências existentes, â criação de novas competências que se revelem necessárias e à qualificação e reconhecimento das lideranças, aos mais diversos níveis. Ainda que isso implique reorganização orgânica e institucional.

Um dos aspectos mais sensíveis da nova legislação proposta é, sem dúvida, a radical alteração do modelo de "governance" das instituições, cortando com a representação por corpos, introduzindo uma perspectiva de gestão estratégica, institucionalizando e forçando, inclusive, a participação externa, tornando mais exigente e responsável a selecção de dirigentes máximos, apostando numa orientação mais gestionária executiva do exercício das funções de direcção em detrimento da postura de emanação e de representação institucional que caracteriza a actual situação.

Quem tem a experiência do exercício de responsabilidades directivas, no contexto da legislação em vigor, reconhece-se, seguramente, na generalidade das alterações introduzidas na nova proposta de lei, sobretudo no plano da gestão das unidades orgânicas. As relações de poder interno estão claramente definidas, acaba-se com a sobreposição de competências entre diversos órgãos de gestão, criam-se todas as condições para uma gestão integrada nos diversos planos – académico, administrativo e financeiro –, separam-se, claramente, as funções de gestão, propriamente ditas, das funções de controle e garantia da qualidade científica e pedagógica. Em termos mais gerais, o modelo de "governance" proposto aposta numa ruptura com o modelo tendencialmente paralisante e característico duma situação em que as instituições não se tinham de preocupar com o mundo externo, em favor de um modelo orientado para o relacionamento com o exterior e de procura de competitividade no contexto nacional e internacional.

As reservas que aqui poderão ser feitas são de dois níveis. Num nível mais geral, poderemos invocar a falta de uma cultura específica e a impreparação dos diversos agentes externos à Universidade para lidar com as questões estratégicas do ensino e da investigação. Num nível mais concreto, poderemos invocar a necessidade de manter as funções de representatividade institucional perante o exterior, por parte dos responsáveis máximos, sobretudo dos Reitores e Presidentes, o que apontaria para um processo mais alargado da escolha desses responsáveis, com a manutenção do caracter electivo da sua designação, através de um órgão e de um processo mais amplo e participado, de que o Conselho Geral, tal como está definido na proposta de lei, seria uma componente. Neste particular é importante ter presente que as instituições de ensino superior precisam da voz da sociedade mas a sociedade não pode prescindir da voz qualificada e independente das instituições de ensino superior.

Um outro aspecto sensível da legislação proposta, diz respeito à possibilidade de as instituições universitárias ou de algumas das suas unidades orgânicas poderem optar – ou serem, inclusive, escolhidas para o fazerem – pelo modelo de organização de fundação pública de direito privado. Independentemente de se poder considerar que está aqui uma base e um estímulo concreto para a recomposição de todo o sistema de ensino superior, julgamos que se trata de uma hipótese que deve merecer toda a atenção das instituições, tendo em conta as perspectivas de evolução da envolvente económica e social e da própria responsabilização dos poderes públicos.

Parece-nos, no entanto, que o modelo carece ainda de alguma definição. Em termos gerais, não é claro se se pretende que seja um modelo a seguir pela generalidade das instituições, ou só por algumas. Em termos mais específicos não existe nada sobre a forma como se poderá responsabilizar os curadores pelo insucesso dos projectos das instituições. Em última análise não se entende a vantagem de transferir para um órgão reduzido, de composição externa à Universidade ou à unidade orgânica, e sem interesses directos envolvidos – designadamente financeiros – o fundamental das responsabilidades em matéria de orientação estratégica das instituições.

Para terminar este artigo, que já vai longo, duas observações finais.

A primeira, para dizer que a proposta de lei ganharia, em termos de discussão e compreensão públicas, se fosse acompanhada pela nova legislação anunciada para as carreiras docentes e de investigação e para o financiamento das instituições de ensino superior.

A segunda, para enfatizar a ideia de que o novo regime jurídico se configura para as instituições de ensino superior como aquilo que os economistas designam, no quadro do funcionamento das economias, por "choque externo assimétrico". Isso deve obrigar a uma atenção muito especial ao processo de transição de forma a potenciar os factores de dinamização e de inovação que o novo enquadramento jurídico inequivocamente comporta.

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