Opinião
Necessidade de Diagnóstico e Tratamento da Preguiça
Valoriza-se o culto do dinamismo social, exclusivamente desenvolvido no campo das actividades exteriores. Eleva-se o prestígio do self-made-man à caça do presente, erguendo-o acima do prestígio intelectual do pensador ...
Eleva-se o prestígio do self-made-man à caça do presente, erguendo-o acima do prestígio intelectual do pensador, cujo trabalho silencioso se desenvolve no campo especulativo, fora dos êxitos apressados, meramente lucrativos e utilitários»:
A actualidade do que aí vai escrito é evidente de mais para merecer qualquer comentário. E, no entanto, esse texto é parte de um trabalho publicado há 60 anos, em pleno Portugal salazarista, pelo Dr. Américo Cortês Pinto - Médico Inspector da Saúde Escolar!
Chegou-me às mãos depois de décadas de pó e esquecimento entre os livros deixados pelo meu avô. Chamou-me a atenção pelo título: «Necessidade do Diagnóstico e Tratamento da Preguiça». Pareceu-me bizarro, e comecei a lê-lo com a arrogância juvenil de um puto de 16 anos, pronto para fazer pilhéria sobre o primarismo ridículo, ultrapassado e patético dos antigos.
Confesso alguma decepção quando, vencidas as primeiras duas páginas, vi que ridículo começava a ser o sorrizinho sarcástico com que iniciara a leitura. O livro não era ridículo! E até era interessante, cheio de dados sobre o desenvolvimento fisiológico e neurológico dos adolescentes e a sua relação com a comuníssima inapetência para os estudos, em contraste com o fascínio pelos jogos imaginativos, nessa fase da vida. E ainda mais: as teorias defendidas pelo Dr. Américo Cortês Pinto - Médico Inspector da Saúde Escolar em Portugal, em 1946 - não só não eram ridículas e ultrapassadas, como poderiam ser tidas como actuais e quase vanguardistas neste Portugal democrático e moderno do ano da Graça de 2005. A certa altura, por exemplo, lê-se: «Se a interpretação dos factos estivesse ao alcance dos pais, com quanta inteligência eles imporiam, em certos casos, o abandono do estudo pela brincadeira? para aproveitamento melhor do próprio estudo!... É o mistério destes paradoxos que torna delicada e complexa a intervenção educativa e a actuação da Saúde Escolar». (Hoje a actuação da Saúde Escolar, ou do que quer que a tenha sucedido, é ou muito discreta ou muito simples - pelo que me dei conta, reduz-se à aplicação de flúor nos dentes dos mais pequenos). Na Finlândia, nº 1 no ranking da educação na Europa, o pensamento desse português de há 60 anos talvez seja melhor compreendido do que neste nosso Portugal de 2005.
É sempre divertido apanhar um preconceituoso em flagrante - mesmo que o preconceituoso seja eu! E é em tom de homenagem e em sinal de arrependimento que, 60 anos depois, dou a este artigo o título que me fez rir, arrogante, do trabalho do Dr. Américo Cortês Pinto antes de o conhecer.
PS: A SIC mostrou as imagens do fuzilamento de um grupo de muçulmanos pelos homens de Milosevic. O texto do jornalista dizia, a certa altura, algo como «dentro de pouco tempo, as armas vão cuspir a morte para dentro dos corpos destes homens». É, no mínimo, de mau gosto ficar à procura de imagens de estilo para narrar imagens como aquelas.
PPS: Carros, rua!