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06 de Setembro de 2005 às 13:59

Luto

Estamos de luto. E no luto é em nós, mais do que em quem se foi, que pensamos. Somos nós o objecto dos nossos lutos, de todos os nossos lutos. Os choros não são sequer possíveis sem alguma dose de auto-piedade.

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É sempre por nós que choramos, às vezes também por quem se foi ou sofre, mas sempre por nós próprios. É por nós que choramos quando choramos pelas vítimas do Katrina. É em nós que pensamos quando pensamos na selvajaria que se instalou na terra arrasada do Mississipi. É a nós próprios que tememos quando assistimos à transformação de pessoas pacatas em salteadores, ladrões e, se for o caso, assassinos.

De que matéria somos, os humanos, feitos – da boa ou da má? Da mesma de que se faz o leão, a andorinha, o rato ou o verme. Que eu saiba, só há três características naturais importantes a distinguir o homem dos outros animais: temos polegar opositor e somos capazes de rir e de estuprar. Nenhum outro bicho o é. No resto (pouco resta além dos instintos de sobrevivência e de preservação da espécie) somos igualzinhos a qualquer aranha, cobra, barata ou cão. O que verdadeiramente nos distingue é o que a nossa história e a nossa pujança intelectual (coisa que não incluí entre o que nos distingue do resto dos animais porque julgo perfeitamente humanos os humanos destituídos dessa pujança - que os há!) permitiram construir em termos de organização colectiva (e nem me falem em formigueiros, que, nesse aspecto são o que há de pior na natureza). Nós é que quando criámos a civilização, a cultura e a moral, criámos o bem e o mal. E nisso nos distinguimos de Deus, porque  a nossa criação suprema, sem chegar a ser oposta, não foi criada à nossa imagem ou sequer à nossa semelhança. A civilização – nossa criação suprema – é o que nos distingue de nós próprios, meros animais.

Quando a civilização se suspende – e é isso que  parece ter acontecido no Mississipi – o homem volta ao seu estado meramente animal. E é difícil julgá-lo – tanto quanto a um leão, a uma aranha ou a uma andorinha (natureza: nem pecado nem perdão).

Mais fácil é julgar quem, montado em séculos e séculos de cultura, de história e de civilização, chama o Katrina de «soldado de Deus». Refiro-me ao director do centro de pesquisas do Ministério de Assuntos Religiosos do Kuwait (logo d’onde, caramba!), Yousef al-Malaifi, em artigo publicado num jornal kuwaitiano citado pelo «Público». Esse senhor é evidentemente  mau. Feito de má matéria. Digno de reprovação e castigo. Mas o que ele diz insere-se perfeitamente no que outros homens igualmente maus vêm dizendo e fazendo com base na civilização, na cultura e nos valores do islamismo. Fica cada vez mais difícil pensar que o islamismo não seja, ele próprio, a matéria de que se fazem esses homens maus. O esforço exigido há-de ser tão grande quanto o que imagino necessário para, em tempos de Torquemada, acreditar que o cristianismo não fosse – ele mesmo, como história, civilização e cultura – tão mau quanto o próprio inquisidor.

Ou o islamismo faz a sua reforma (imaginem o que aconteceria a um padre que tomasse o tzunami na muçulmana Indonésia como um «soldado de Deus») ou acabará por ser visto como uma deformação do que a própria civilização entende como civilização, no que se incluem valores como a solidariedade e sentimentos como a compaixão.

PS: É assustador pensar em como, em situação de catástrofe, se comportaria um povo cujo nível civilizacional não é suficiente sequer para que compreenda que o passeio público não deve ser transformado em estacionamento.

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