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03 de Junho de 2002 às 18:17

Luis Bento: «Os 4 R(s)»

Confunde-se Estado com Governo, confunde-se Administração do Estado com Administração Pública – como existisse só uma – e, acima de tudo, confunde-se Administração com Gestão.

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Reformar, Reestruturar, Reformular, Reorganizar, eis os mandamentos da doutrina dos 4 R(s), que constituem a mais recente cartilha daquilo a que se vem convencionando chamar a Reforma da Administração Pública. E aqui começam as grandes confusões.

Confunde-se Estado com Governo, confunde-se Administração do Estado com Administração Pública – como existisse só uma – e, acima de tudo, confunde-se Administração com Gestão.

Seria bom que muitos dos mais recentes arautos da doutrina dos 4 R(s) lessem, ou relessem, alguns conceitos básicos e doutrinários, para que não dissessem tanto disparate e, fundamentalmente, para poderem perceber as consequências mediatas do que estão a fazer.

Poderiam, por exemplo, começar por ler o «Paradigma Perdido», de Edgar Morin e passar depois pelo «Macroscópio», de Joel de Rosnay – fazendo alguns exercícios práticos – seguidamente, fazer umas fichas de leitura do «Reinventing Governance» e talvez terminar, no segundo semestre, pelo «Manual de Prospectiva Estratégica» do Michel Godet. Dava um ar letrado e sempre podia acontecer algo de inesperado, como seja, parar para pensar.

Continuando o processo de «update» e para educar os sentidos, nada melhor do que começar pelas emoções, vivendo 45 dias sem carro, água ou electricidade, sem aquecimento ou refrigeração e tendo que encontrar a criatividade necessária para comer todos os dias com um euro. Após esse período, e de forma a evoluírem para um estádio superior de auto-conhecimento, recomendaria uma breve passagem pelo processo de marcação de uma consulta externa de especialidade num hospital central, acompanhada da visita diária ao Arquivo de Identificação de Lisboa para renovar o Bilhete de Identidade. Os aspectos lúdicos – absolutamente necessários para equilibrar tanta privação – estariam a cargo do jogo da sueca no Jardim da Estrela, ao final da tarde e do Masterplan ao cair da noite.

As madrugadas, seriam passadas nas filas para obtenção de uma consulta de clínica geral, num qualquer centro de saúde de Lisboa, pois seria importante que voltassem ao trabalho nas melhores condições físicas. Trata-se de um processo de «update» e não de uma tentativa de extermínio.

O retorno ao trabalho seria então muito mais reflectido e ponderado – desde que acompanhado por um tutor credenciado (de preferência formado em psicologia clínica) para evitar qualquer tipo de revanchismo – e poderíamos então esperar uma evolução natural para um estádio de reflexão e de decisão mais adequado aos tempos modernos. Assistiríamos, provavelmente, a um abandono da doutrina dos 4R(s) – que poderia continuar a ser estudada, sem prejuízos de maior, num qualquer centro de estudos de uma qualquer universidade – e ao ressurgimento de uma preocupação real e concreta com os problemas reais e concretos de que padece, crónicamente, a Administração do Estado e todos os serviços e estruturas que dela emanam e dependem, directa ou indirectamente.

Não estranharia, que após o processo de «update» atrás referido, muitos dos que agora falam em nome da doutrina dos 4R(s) , aparecessem, de repente, a invocar a necessidade de começar a reforma do Estado, pela reforma do próprio processo de produção legislativa, afinal, aquele que, apesar de ser um processo de produção – dos mais profícuos, aliás, do nosso país (e ainda há quem diga que a nossa produtividade é baixa) – é, acima de tudo, um processo de não-produção, na medida em que confunde causa com origem, e fonte com resultado, sendo o mais entrópico dos processos de produção. Na prática, pode produzir o que quiser, na quantidade que quiser, que o mais provável é ninguém dar por isso, pois o estado de necessidade permanece inalterável.

Não ficaria também surpreendido se os participantes no processo de melhoria do auto-conhecimento – os que resistissem – acabassem por perceber, tarde, mas ainda em tempo oportuno, que, afinal, a forma de fazer as coisas é, na maior parte das vezes, mais importante do que aquilo que se está a fazer.

Na estética, sem a forma adequada, não existe conteúdo, ou, mesmo que exista do ponto de vista físico, não tem qualquer relação com a natureza das coisas.

Sim, porque, isto de fazer a reforma da Administração Pública é, acima de tudo, um problema de estética, a não ser que se seja um consumidor compulsivo da doutrina dos 4R(s).

Nesse caso, é melhor emigrar para a Moldávia e esperar que passe.


Luís Bento

Partner da SERH

Comentários para o autor para luis.bento@netcabo.pt

Artigo publicado no Jornal de Negócios – suplemento Negócios & Estratégia

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