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Opinião
26 de Outubro de 2005 às 13:59

Laicismo e outras coisas

O debate público sobre a Europa parecia extremar-se entre dois campos: os que defendiam o laicismo e os que defendiam um Estado confessional, ou mesmo fundamentalista religioso. Como é hábito nas polémicas públicas, parece que apenas existem duas partes n

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A polémica esqueceu as múltiplas variantes de sistemas possíveis de ligação entre o Estado e a religião, as múltiplas formas de o Estado com ela conviver e a permitir. O que é frequente é conviverem mais de uma dessas formas num mesmo Estado, e que esse convívio varie ao longo do tempo, em intensidade, modo e modelo.

Só analisando cada um desses modelos podemos ver até que ponto a realidade é mais diversa e menos recortada do que os polemistas gostam de dar a entender.

O primeiro sistema é o da protecção (mais ou menos selectiva) de minorias. Na Europa, o melhor exemplo disso foram os Estados Pontifícios em relação aos judeus. Paradoxo só para quem esquece a História. Mais nenhum Estado foi tão constantemente protector dos judeus quanto os Estados Pontifícios. Todos os reinos europeus oscilaram entre protecção e perseguição, desde a Inglaterra que tem a precedência na primeira expulsão dos judeus até aos estados ibéricos, os príncipes alemães ou italianos, o reino de França, ou o geralmente protector império austro-húngaro. Na Ásia, os impérios muçulmanos, turcos e árabes. Em geral o sistema de protecção caracteriza-se por uma exclusão mais ou menos intensa, elementos de humilhação simbólica ou financeira (a capitação dos dhimmi nos Estados muçulmanos, dos judeus e muçulmanos nos Estados europeus, as estrelas de David).

O segundo sistema é o da tolerância. As motivações podem ser as mais nobres ou meramente políticas ou económicas, o grau de tolerância pode ser maior ou menor. Tolerância humanista no século XVIII (o papado de Bento XIV é um bom exemplo e a admiração que ele suscitava entre os protestantes ainda melhor), comercial em Inglaterra, mista na Holanda do século XVII. Outras vezes tem razões meramente políticas. Estados ateus como a China têm de a praticar tendo em conta a diversidade de religiões ou o Estado fundamentalista islâmico iraniano (em relação a sunnitas, zoroastrianos). Dois bons exemplos extremados em que nenhuma razão ideológica impõe a tolerância, mas apenas o pragmatismo político.

O terceiro sistema é o da liberdade privada. Aqui o modelo é jurídico, confere-se um direito, mas limitado. É o caso de muitos Estados confessionais no século XIX, como Portugal das Constituições liberais monárquicas, ou a Inglaterra do século XIX. O culto público é, pelo menos para certas religiões interdito, embora em graus diversos. Por isso igrejas católicas do século XIX em Londres se chamam de Oratory e não Church, ou Cathedral.

O quarto sistema o da liberdade pública. O culto público é possível, ter igrejas protestantes, ortodoxas ou católicas é possível. A França do II Império e do início da III República foi bom exemplo disso.

Repare-se que nenhum destes sistemas impõe um Estado neutro, separação entre igreja e Estado ou laicismo.

O quinto sistema é o da separação entre igreja e Estado. Se bem se vir este sistema nada tem a ver com a maior ou menor liberdade religiosa, mas antes com o próprio funcionamento e organização do Estado. A separação significa tão-somente que as instituições religiosas e as civis não se interpenetram. Os órgãos do Estado não influenciam as instituições religiosas e as instituições religiosas não influenciam as instituições civis. Os estados laicos são maus exemplos de separação. A França recentemente constituiu um conselho do culto muçulmano, determinou assim a criação de uma instituição religiosa. Inversamente, e dando um exemplo asiático, os imãs são funcionários públicos na Turquia, que recebeu influência ideológica do jacobinismo francês. Países de tradição de liberdade religiosa não têm essa separação como a Inglaterra em que a rainha é o chefe da Igreja Anglicana. A separação nada tem de novo ao contrário do que se pensa. No século XI Guilherme o Conquistador separa os tribunais eclesiásticos dos civis, o galicanismo francês, a polémica das investiduras entre o Império e o papado mostram que desde a Idade Média este fenómeno ocorre. Nada tem a ver forçosamente com a Revolução Francesa ou as revoluções liberais em geral.

O sexto é o do Estado neutro. Esta neutralidade é sempre mais um desiderato que uma realidade, mas aqui o que está em causa é a ideologia religiosa não influenciar o Estado nem a ideologia do Estado influenciar a religião. Mero desiderato porque a sociedade não permite que o Estado seja totalmente neutro. Não é por acaso que são países católicos da Europa que discutem mais o aborto. A Alemanha não é um Estado neutro, havendo impostos religiosos, reconhecendo a filiação religiosa dos titulares de órgãos do Estado, prestando-se juramentos religiosos. De igual forma em países asiáticos a neutralidade não existe. Na Turquia, por exemplo, o artigo 24º da sua Constituição distingue «educação religiosa», que é dada obrigatoriamente pelo Estado, de «outras religiões», e o Conselho dos Assuntos Religiosos (órgão estatal) declarou recentemente que a relação entre o Estado e a sociedade muçulmana se rege pelo fiqh, a jurisprudência tradicional islâmica (ou seja, os cristãos e judeus são dhimmi, protegidos, mas não iguais).

O sétimo é o Estado laico em sentido próprio. O laicismo é exactamente o contrário da neutralidade. O Estado pretende apagar da esfera pública toda a marca de religião. Mas aqui há três tipos de sistemas e graus diversos, que vão desde a limpeza absoluta de manifestações religiosas no interior do Estado, de participação de órgãos do Estado em cerimónias religiosas (seria inconcebível em França que o presidente convidasse o cardeal de Paris como o faz o português).

Há três tipos de Estado laico:

a) o agnóstico ou deísta, de tipo francês actual, que tem a sua origem no radicalismo francês da terceira república

b) o ateu de tipo comunista, fascista ou nazi

c) o cesaropapista que tem na Europa como exemplo a constituição civil do clero durante a Revolução Francesa e na Ásia a Turquia em que os imãs são funcionários públicos e desde o recrutamento à doutrina religiosos são controlados pelo Estado.

Num curto espaço como este não se pode desenvolver mais a tipologia. Mas temos já elementos para apagar alguns lugares comuns profundamente injustos.

A liberdade religiosa pode não conviver bem com a tolerância. Imagine-se uma procissão xiita em Lisboa com cem mil pessoas e veremos que efeitos num país com a mais total liberdade religiosa (problema jurídico, lembro) teria nas pessoas. E pode haver tolerância sem liberdade.

Os resultados mais interessantes são no entanto os referentes ao laicismo:

a) Os Estados laicos nunca foram bom exemplo de liberdade religiosa e ainda menos de tolerância. Raros foram democráticos (salvo o exemplo francês, mais nenhum é, e apesar e não por isso). A I República portuguesa, em má imitação da III francesa, perseguiu a igreja católica, os nazis perseguiram ferozmente cristãos nessa qualidade, e o fascismo teve de engolir essa coisa desagradável que era o catolicismo italiano, mas com muita dificuldade. Na Ásia, na Turquia, são bem conhecidas as perseguições e discriminações em relação sobretudo às minorias cristãs, mas também xiitas e alevis.

b) O laicismo é sempre militante, impõe uma determinada conformação da religião, pelo menos no espaço público, isto quando não a regula no espaço privado. O laicismo historicamente não separou a igreja do Estado mas absorveu-a (na Ásia a Turquia), ou destruiu-a em maior ou menor grau (na Europa com os fascismo, nazismo e comunismo).

c) O laicismo não é neutro religiosamente. Pretende impor um espaço público, não só estatal, mas societário, sem religião, ou com uma religião controlada.

Em suma, o que caracteriza a Europa não é o laicismo. Só um país na Europa é laico em verdadeiro sentido, a França, e mesmo assim de forma historicamente atípica por ser uma democracia. E nem todos os países europeus têm separação do Estado e da igreja. A neutralidade religiosa do Estado é entendida por outro lado de formas muito diversas consoante os países. Em conclusão, afirmar que um país é laico, como se diz da Turquia, em nada releva para o considerar um país europeu.

Não é neste campo que se pode encontrar a tessitura comum da Europa actual. Em geral, encontra-se na liberdade religiosa privada sem limites além dos penais gerais (e não especificamente religiosos). Numa liberdade pública com graus diversos (não se encontram com facilidade procissões em Paris, por exemplo). E numa tolerância religiosa em que a tepidez religiosa, razões políticas, económicas, humanitárias e religiosas (o ecumenismo contribuiu para isso) entram em graus diversos. Mas não nos deixemos enganar pelo critério da tolerância. É que se variam as suas motivações, também varia no espaço e no tempo a sua amplitude e a sua intensidade. E sendo uma questão de facto, o direito tem fortes limitações para a regular plenamente.

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