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29 de Maio de 2002 às 17:45

José António Barreiros: «A prova pericial penal – o reino da quantidade»

A verdade é que se consagrou um sistema que proíbe a qualidade em nome de uma lógica de função pública. A abertura ao sector privado, essa só existe quando a perícia pública entra em ruptura de quantidade.

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Peritos em contabilidade, em finanças, em mercados de capitais. Seguramente que são essenciais para o funcionamento da justiça penal, na área da criminalidade económica. Mas, tal como estão as coisas em Portugal, a verdade é que se consagrou um sistema que proíbe a qualidade em nome de uma lógica de função pública. A abertura ao sector privado, essa só existe quando a perícia pública entra em ruptura de quantidade…

Os tempos modernos assistiram ao ocaso da prova testemunhal e ao desenvolver dos meios de prova pericial.

Era lógico que assim fosse.

Na área da criminalidade económica, então, fazia todo o sentido esse devir da história.

Claro que a isto não foi estranho o facto de os magistrados terem pouca formação especializada nas áreas nas quais eram chamados a julgar.

Pouco familiarizados com instrumentos como a contabilidade, ou com domínios como o sistema bancário e do mercado de capitais, só a ajuda de peritos lhes permitia orientarem-se em termos de uma decisão com conhecimento de causa.

Assim sucedeu também em Portugal.

Só que no nosso país, ao consagrar-se a perícia penal como meio essencial de prova, o legislador fê-lo com o total arrepio do sistema do contraditório.

Os resultados estão à vista e não são os melhores.


Oralidade e contraditório

O sistema actual de justiça penal assenta em duas ideias essenciais: oralidade e contraditório.

A oralidade significa que a prova decisiva para a sentença penal é aquela que se produzir em audiência de julgamento.

O contraditório significa que a produção da prova em geral e a própria audiência na qual tal prova se produz, decorrem através de uma discussão entre dois sujeitos processuais, o acusador e o acusado, ante um juiz neutral.

Claro que ele há depois as perversões do sistema.

Há a prova recolhida no inquérito que deu azo à acusação e que era suposta não ser tida em conta no julgamento, mas que, por estar no processo, é objecto de uma leitura «informal» por parte dos juízes que julgam o caso e que, ao menos psicologicamente, se deixam impressionar por ela.

Há o juiz que, abandonando o território da neutralidade, se aventura pela condução oficiosa dos trabalhos de audiência, substituindo-se ao acusador público e por vezes também à própria defesa.

Há enfim, e isso que nos vai ocupar, o contraditório em que todos são iguais, só que uns são mais iguais do que outros.

É que, para quem esteja familiarizado com o sistema, uma constatação é certa: de um lado está o Estado, unindo o juiz, o procurador e, como se verá, os peritos, do outro o acusado e o seu advogado, a sociedade civil, na sua pior e mais desguarnecida expressão.

Um julgamento é o desenrolar sucessivo da prova organizada pelo acusador e depois da prova organizada pelo acusado; aquela primeiro do que esta, por se considerar tal precedência uma garantia de defesa.

De acordo com as regras todos os meios de prova são admissíveis.

Só que a isso faz excepção a prova pericial.

Parece estranho, mas é a realidade.

A prova pericial é aquela que ocorre quando se torna necessário socorrer-se de alguém que detenha especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.

Por via desta definição, é suposto que tanto o acusador como o acusado queiram chamar à audiência, na qualidade de peritos, pessoas que se hajam distinguido por tais conhecimentos especializados.

Só que estão limitados a fazê-lo.

Na verdade, aquilo que vigora é um princípio oposto, o qual de uma só assentada nega a liberdade de nomeação e o próprio contraditório na produção de prova.

Na verdade, segundo o artigo 152º, n.º 1 do Código de Processo Penal, «a perícia é, em geral, realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não for possível ou conveniente, por peritos nomeados de entre pessoas constantes de listas de peritos existentes em cada comarca, ou, na sua falta ou impossibilidade de resposta em tempo útil, por pessoa de honorabilidade e de reconhecida competência na matéria em causa».

Quer isto dizer várias coisas.

Primeiro, que a nomeação de peritos é oficiosa, cabe ao tribunal e não às «partes» acusadora e acusado.

Segundo, que a nomeação de peritos ocorre de entre um elenco restrito de pessoas, primacialmente de entre uma lista pré-constituída de disponíveis.

Ou seja, o acusado, se quiser indicar alguém que, pelos seus conhecimento técnicos, científicos ou artísticos, possa emitir uma opinião abalizada sobre o caso em julgamento, não pode fazê-lo.

Mais, mesmo que a nomeação do tribunal recaia sobre alguém que, sendo supostamente portador desses conhecimentos especializados, na prática, os não possua em grau suficiente, o acusado não pode fazer indicar alguém melhor preparado ou melhor habilitado. É o bizarro de proibir o melhor, mesmo quando se sabe que ele existe.


Oficiosidade e oficalidade

Sistema de oficiosidade – cabe ao juiz oficiosamente nomear – e de oficialidade – e regra é que os peritos são funcionários – o sistema da prova pericial tem, a rematar, uma outra particularidade, o desconsiderar completamente o que seja indicado pelos sujeitos privados.

Na verdade, a lei não permitindo às «partes» que indiquem peritos, permite-lhes apenas que indiquem «consultores técnicos».

Só que, lendo a lei, verifica-se que aos consultores técnicos cabe, afinal, uma parte muito diminuta de poderes e de meios de acção.

Na verdade, aos ditos consultores técnicos cabe apenas o propor – só isso - «a efectivação de determinadas diligências e formular observações e objecções» ao que tiver sido o trabalho dos peritos.


Negar o melhor, permitir o possível

Tudo visto, não será difícil formular reparos.

O primeiro reparo é em nome da qualidade: a verdade é que o Estado, pois que não paga bem, nem sempre tem o melhor. Nesta lógica, um sistema que assente na oficialidade, ou seja, numa nomeação de peritos saídos preferencialmente de estabelecimentos públicos, está condenado a não trazer aos tribunais o melhor contributo possível. É absurdo, até porque, em função de um diploma recente, o Ministério da Justiça pode autorizar a contratação a serviços privados, do trabalho pericial que o sistema público não fornece atempadamente. Ora se a perícia pode ser privada quando a pública não for atempada, então, cabe perguntar porque não poderá ser privada logo na origem, se não por causa da resposta atempada, ao menos para uma resposta de nível e de qualidade.

O segundo reparo é em nome da igualdade, a qual é suposto ser um dos pilares em que assenta o nosso sistema judicial penal. É que, privados do poder de nomear peritos, limitados a indicar consultores que, ou pouco podem fazer ou nem sequer podem fazer o que seja, os acusados vêm-se julgados com base em peritos que fazem parte do sistema oficial, o mesmo que assim irmana juízes, procuradores e peritos. O terceiro reparo decorre do resultado final de tudo isto.

Diz o artigo 163º, n.º 1 do Código de Processo Penal que «o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador», aditando o n.º 2 que «sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência».

Percebe-se como é.

Perito, em regra é rei. Pode ser até rei absoluto, pois o juiz, se quiser discordar, tem de fundamentar porquê.

Ora num sistema em que há peritos porque se supõe que eles têm o que aos juristas falta, ou seja, conhecimento especializado da matéria, como haverá o juiz, para enfrentar o perito, de arvorar-se em sabedor do que é suposto ser ignorante?

Não seria melhor um sistema pelo qual, não colocando o juiz em situações desconfortáveis, e respeitando afinal o contraditório, que é ínsito à igualdade constitucional das pessoas, se admitisse que o acusador indicasse os seus peritos e o acusado outros tantos, podendo o juiz, no caso de dúvida ou divergência, poder socorrer-se de um colégio de peritos que assim proferiria laudo pericial final sobre a matéria?

Claro que sim.

Só que o sistema actual tem uma grande vantagem, razão pela qual subsiste.

É fácil, é barato e, às vezes, dá condenações…


José António Barreiros

Advogado

Barrocas & Alves Pereira

Comentários para o autor para pveiga@bap.pt

Artigo publicado no Jornal de Negócios – suplemento Negócios & Estratégia

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