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27 de Março de 2002 às 15:55

João Abel de Freitas: As Finanças das Regiões Autónomas - uma questão polémica

A lei das Finanças Regionais foi produzida sem informação à população e sem debate público quer nas Regiões quer no País.

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O Manifesto sobre as Finanças Públicas, assinado por nove personalidades, e divulgado em 9 de Fevereiro último, no Diário de Notícias, defende na sua alínea f) a revisão da legislação sobre e, passo a citar, as «transferências obrigatórias do Estado para outros subsectores do sector público administrativo (nomeadamente, regiões autónomas e autarquias), por forma a torná-las compatíveis com os objectivos de consolidação orçamental e proibir o Estado de assumir dívidas desses mesmos sectores, por forma a tornar efectiva a restrição orçamental a que eles devem, como todos os agentes económicos, estar sujeitos».

Esta afirmação, aparentemente bombástica, quando analisada a frio, traduz apenas uma reafirmação lógica do princípio e dever de solidariedade que deve existir entre a República e as regiões. É nesse contexto de dever de solidariedade que se compreendem as transferências financeiras para as Regiões Autonómas dos Açores e da Madeira e foi assim que, em 1998, depois de tantos anos de Autonomia, se instituiu a Lei das Finanças Regionais.

Acontece que o País atravessa uma situação muito crítica nas finanças públicas (situação resultado da gestão dos sucessivos governos), constituindo esta um sério obstáculo ao cumprimento de compromissos internacionais como o Pacto de Estabilidade e ao desenvolvimento do País e, por conseguinte, um sério obstáculo para o progresso de todas as suas Regiões.

O mais natural e normal, numa situação crítica como a presente e numa visão de solução para o problema, é o estabelecimento de princípios e actuações que se ajustem ao todo nacional, responsabilizando-se, assim, todos os actores políticos a alinharem no caminho correcto e de forma concertada. (Em meu entender, vozes como «não foram as Regiões Autonómas que provocaram a crise» são cartas fora do baralho, porque de igual modo também não foram o Alentejo ou Trás-os-Montes. Mas ir por aqui levar-nos–ia a uma outra reflexão).

Uma postura de solidariedade deve funcionar nos dois sentidos (República/Regiões e Regiões/República) e situar-se acima de todos os interesses. Há pois que assumir a disciplina financeira que a situação do país impõe, introduzindo as correcções tidas por necessárias em todo o território nacional, designadamente através de uma reorientação das despesas para o desenvolvimento e o melhor bem estar da população e do alargamento da base tributária no sentido de uma maior justiça relativa entre os cidadãos.

A Lei das Finanças Regionais de 1998 constituiu um primeiro marco importante no relacionamento financeiro entre a República e as suas Regiões Autónomas. Direi mesmo um passo fundamental foi dado com esta Lei. Sem dúvida, muita coisa ficou pendente e por fazer a diferentes níveis.

Mas há uma direcção essencial em todo este processo, não resolvida em devido tempo, que urge atalhar:

E, independentemente da sua «bondade», gerou-se o maior desconforto nos contribuintes do Continente porque desconhecem os montantes transferidos que pensam sair do seu bolso (na realidade, mesmo o mais «avisado» cidadão dificilmente acede ao envelope financeiro real que a República transfere directa e indirectamente para as Regiões), como reina a nível das Regiões Autónomas a opinião, desde há muito veiculada e mais ou menos acentuada pelos poderes políticos regionais, de que as verbas transferidas são menos que as receitas cobradas nas Regiões. Deparamo-nos, assim, perante duas visões claramente opostas de uma mesma questão, entre os contribuintes das Regiões e do Continente que, em minha opinião, não interessa a ninguém, pelo menos, numa óptica de cidadania nacional.

Não vou aqui debruçar-me sobre as razões históricas e «as bandeiras» desta desconfiança mútua. Mas ficaríamos todos bem melhor se se entrasse num processo de clarificação e de transparência que passa certamente, entre outras coisas, por um debate desapaixonado que tarda, orientado sobretudo para os princípios e critérios que orientam as transferências financeiras, o que certamente iria desembocar em questões ainda mais envolventes como o do próprio conceito de Autonomia e as expectativas da sua evolução, levando a questionar o porquê ainda de instituições como a do Ministro da República.

Alguém me diz que já tenho anos de vida para ser menos ingénuo (admito, esta situação dá dividendos). Apesar disso, continuo a defender (há lugar ainda para alguma utopia) que a ausência de transparência não é boa, pelo menos do ponto de vista da doutrina e dos sãos princípios da formação de cidadania.

Falando claro, o cerne desta questão é: quanto deve ser o envelope das transferências financeiras e com que critérios.

As bases lançadas sobre esta matéria, com a Lei das Finanças Regionais, têm de continuar a ser desenvolvidas e aprofundadas por etapas.

Um primeiro passo pode/deve consistir no levantamento do montante das transferências e na sua divulgação pública, pois estou convencido que avanços nesta matéria são positivos para todas as partes.

Um segundo passo leva-nos a quantificar as receitas cobradas nas Regiões com a identificação precisa das suas fontes, incluindo, no caso da Madeira, as originadas na actividade do CINM – Centro Internacional de Negócios («Off-Shore») que constitui também um centro de polémica, designadamente porque no seu percurso foi usado políticamente e, compará-las com os montantes transferidos.

Um terceiro passo consistiria, na base desta informação recolhida e trabalhada, lançar um processo de debate sério e aberto com auscultação das mais variadas instituições e do cidadão, sobre os princípios e as formas que a solidariedade deve assumir, com grande divulgação na comunicação social.

Um quarto passo seria reflectir na eficiência do sistema fiscal regional cuja matéria se prende com a regionalização ou não desses serviços. Assumo que tenho dificuldades em entender as razões subjacentes à continuação da sua dependência do governo central bem como o não acesso «on line» das Regiões à informação sistemática sobre as receitas cobradas. Muitos mais passos se poderiam sugerir. Mas não é meu propósito elencar exaustivamente as questões, nem a ordem porque elas se deveriam abordar no terreno.

Assim, esta discussão, para ser económica e políticamente consequente, deve orientar-se para o aprofundamento de um conjunto amplo de temas, em círculo aberto, ou seja, deve ser alargada a todas as correntes de opinião. Deve assentar/partir da concepção do próprio processo de Autonomia (também objecto do debate) que tem, no essencial, uma raiz cultural e uma perspectiva dinâmica e inacabada.

A questão das Finanças das Regiões Autónomas, até pelo tempo de maturidade das próprias Autonomias Regionais, merece bem o confronto de ideias (e de ideais) e quem detém o Poder não deveria temê-lo.

O aprofundamento desta temática exige, assim, um trabalho de reflexão e um objectivo a atingir: a construção de ferramentas sólidas que sustentem negociações saudáveis e isentas de suspeição, da parte do cidadão, quanto ao financiamento das economias das Regiões.

João Abel de Freitas , economista

Artigo publicado no Jornal de Negócios – suplemento Negócios & Estratégia

Comentários para o autor para joao.abel@gepe.min-economia.pt

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