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07 de Agosto de 2003 às 11:28

Incendiário

Politicamente, a greve dos taxistas por causa do PEC podia ter sido o “buzinão” deste Governo; os incêndios que abrasam o país são o seu desastre de Entre-os-Rios. E não houve discernimento para não deixar as coisas piorar.

Pedro S. Guerreiro

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Uma catástrofe abateu-se sobre Portugal. Os fogos que nos últimos dias – em breve serão semanas! – vão consumindo milhares de hectares de floresta portuguesa consomem, também, coisas mais improváveis.

Não são só as casas que não estamos habituados a ver ameaçadas. Ou as cidades com fogo às portas. Ou os corpos carbonizados. Mas também coisas menos tangíveis. Como a sensação de segurança que vemos desfeita.

À volta da desgraça, geraram-se vários factos novos. Nas televisões, por exemplo, esta é a primeira vez que vemos um acompanhamento “in loco” e em directo tão enfático – são “reality shows” servidos em “prime-time” e durante horas a fio.

A pressão dos media dá eco às exigências, às desilusões e aos desesperos das populações. Em tempo real, respondem os bombeiros, os sapadores, as autoridades e os políticos.

E alguns registos têm sido desastrosos. Como as infelizes declarações de que com este calor não há nada a fazer, de que os sapadores não são competentes, de que a culpa é das granadas que os ex-combatentes no Ultramar têm em casa (!), de que até morreu pouca gente para a dimensão da catastrofe. Pior só mesmo o argumento de que esta não é altura para tirar ilações políticas, usado como um pequeno alçapão de fuga de cena pelo primeiro-ministro Durão Barroso ou pelo ministro da Administração Interna Figueiredo Lopes.

Politicamente, a greve dos taxistas por causa do pagamento especial por conta podia ter sido o “buzinão” deste Governo; os incêndios que abrasam o país são o seu desastre da ponte de Entre-os-Rios. Se no primeiro caso, a habilidade negocial foi suficiente para evitar a guerra, no segundo não houve discernimento para não deixar as coisas piorar.

E a cabeça de Figueiredo Lopes vai ter de rolar. O povo não lhe perdoará que tenha prometido limpar as matas há um ano e nada tenha feito. Este foi – e é – um símbolo óbvio da demagogia política. E o pior é que ficamos com a desfortável sensação que a promessa vã não aconteceu por vir de Figueiredo Lopes, provavelmente viria de qualquer Figueiredo Lopes que ocupasso o cargo; provavelmente, outras promessas vãs são episodicamente renovadas, todas sem cobrança. E assim nos sucederemos até à consumação dos séculos, como escreveu Aquilino.

A verdade, por muito que nos custe, é que por detrás de cada discurso de promessas solenes pode estar um Figueiredo Lopes em potência.

Ficámos também a saber que a contracção da despesa pública este ano obrigou a cortes no combate aos fogos. E que o país deixou apodrecer, por falta de uso, um equipamento comprado há alguns anos para equipar os aviões Hercules C-130 no combate às chamas.

O erro, técnico, foi do estilo do dos Pendulares da CP, adquiridos sem cuidar que a linha para que se destinavam não estava preparada para que eles pudessem operar em pleno.

Mas houve mais factos novos. A desgraça de alguns provocou o choque de todos e gerou ondas de solideriadade. Entre elas, a de muitas empresas. Mas o genuíno altruísmo de alguns gestores já se misturou com uma noção bacoca e oportunística de marketing social. São muitas as empresas que estão a oferecer produtos a populações afectadas. E há outras, que prestam serviços sem préstimo para o caso, que enviam para as redacções dos jornais comunicados que proclamam que a empresa X, “produtora de impressoras jacto de tinta de última geração, presta a sua solidaridade às vítimas dos fogos que têm assolado Portugal e disponibiliza-se para ajudar a comunidade.” Marketing social? Irra! Havia uma charada que se fazia quando era criança. Era um jogo pueril: perguntava--se, e respondia-se, como reagiríamos num incêndio na nossa própria casa. Tínhamos que responder o que, nesse caso, salvaríamos, se pudessemos salvar um e apenas um objecto. O que era aparentemente um passatempo de crianças era, afinal, uma maneira de descobrimos nós mesmos o que mais prezávamos, aquilo de que mais gostávamos, o que menos queríamos perder. E isso introduzia um raciocínio de hierarquização de afectos e de posses a que uma criança não está normalmente habituada. As respostas nunca foram superficiais.

No filme “Heat” (Michael Mann, 1995), o vilão protagonizado por Robert de Niro repete a máxima de que nunca se pode ter nada que não se esteja disposto a deixar para trás quando o “calor” chegar.

Suponho que a charada das crianças seja a negação desta pretensão (a que o próprio de Niro, aliás, não resiste no filme).

O que mais impressiona nas imagens que hoje vemos na TV é esse drama humano, que é individual e não é colectivo, de perder e saber que nada compensará o que ficou para trás, sem retorno. Aí, as declarações ou não-declarações de Durão ou Lopes são irrelevantes. A sua significância é zero. Mas as suas responsabilidades não.

Pedro Santos Guerreiro, Chefe de Redacção do Jornal de Negocios

Artigo publicado no Jornal de Negocios

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