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Mário Negreiros 15 de Fevereiro de 2005 às 13:59

Fado tropical

A freira norte-americana naturalizada brasileira, Dorothy Stang, viveu os últimos 20 dos seus 74 anos no estado amazónico do Pará.

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No último sábado, acompanhada por dois agricultores, caminhava pelo assentamento «Esperança», no município de Anapú, quando foi abordada por dois homens que lhe perguntaram se estava armada. Disse-lhes que sim, que estava armada com a Bíblia, e chegou a ler trechos do Livro antes que os homens a matassem com seis tiros.

Conheci três pistoleiros profissionais brasileiros. Nenhum deles parecia ter raiva das vítimas nem desvios sádicos nem remorsos. Encaravam as vítimas como alvos a abater e remetiam as implicações morais dos seus actos para o terreno amoral e inexorável das fatalidades: «à vítima coube morrer, a mim coube matar», eis como, não necessariamente nessas palavras, os pistoleiros com quem conversei encaravam os crimes que tinham cometido.

Todos eles estavam presos e, presos, pareciam ter consciência de que ocupavam um dos – se não o – mais baixos lugares da «cadeia alimentar» das sociedades toscas e brutas que habitavam. Possivelmente, no momento em que dispararam as suas armas terão sentido o gozo da superioridade sobre as vítimas mas, na prisão, admitiam calmamente – com uma calma algo perturbadora – que as vítimas lhes eram moralmente muito, muito superiores. Não me surpreenderia se me contassem que os assassinos da irmã Dorothy, cumprido o serviço, tivessem rezado pela alma daquela boa mulher. Ou que sejam capazes de chorar diante de uma cena mais tocante da novela. A chave da paz de espírito desses matadores profissionais chama-se fatalismo.

Não sei se haverá hoje, no mundo, lugar onde se arranje pistoleiros mais em conta do que no Brasil. Pelo que sei desse mercado, seria capaz de apostar que o assassinato da irmã Dorothy (religiosos são um bocadinho mais caros) não terá saído por mais do que 500 euros. Mas, qualquer que tenha sido o preço pago, posso afirmar que um dos ingredientes desse crime foi a indulgência plena que só o fatalismo é capaz de conceder a um assassino.

PS: Já está decretada a prisão de dois supostos pistoleiros e de um suposto mandante do assassinato da irmã Dorothy.

PPS: As autoridades policiais do Pará estavam há pelo menos seis meses avisadas de que a irmã Dorothy sofria ameaças de morte.

PPPS: Em Anapú foram ouvidos fogos de artifício depois de anunciado o assassinato da irmã Dorothy

PPPPS: O assassinato da irmã Dorothy terá sido motivado por disputas entre lavradores assentados e «grileiros». O termo «grileiro» vem de grilo – bichinho cuja urina tem o poder de amarelecer papéis, de maneira que um registo imóvel redigido hoje, deixado uma semana trancado numa gaveta com um grilo, pareça um vetusto documento de há 50 anos.

PPPPPS: E há também os «grileiros» modernos, urbanos e portugueses, que nem se dão ao trabalho de amarelecer documentos falsos e simplesmente se apossam, com os seus carros e sem cerimónias, dos passeios públicos.

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