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Nuno Ribeiro da Silva 10 de Março de 2006 às 13:59

Energia na Europa: o regresso às origens?

Se a França não aprendeu a lição, de quando o Governo de Vichy intrigava no palácio as tropas alemãs passavam por debaixo do Arco do Triunfo, que Bruxelas tente lembrar aos líderes europeus que, nas horas difíceis, só aos ratos é permitido o salve-se quem

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Desde o último artigo, quinze dias atrás, o que tem vindo a acontecer na Europa – quer no plano da política energética e do protagonismo da Comissão, quer no domínio dos movimentos empresariais de inspiração nacionalista – é surpreendente e de extraordinária relevância política.

Parece o «regresso às cavernas», documentado na actuação política, nas declarações e actos públicos, protagonizados por alguns líderes europeus.

Tomemos apenas dois exemplos, envolvendo directamente a Espanha, França, Alemanha, Bélgica e Itália:

- o Governo espanhol, promotor e apoiante da OPA da catalã Gas Natural sobre a ENDESA, inventa legislação em 48 horas para boicotar a contra-OPA da alemã E.ON;

- o Governo francês, com o Primeiro-Ministro a «selar» o aperto de mão entre a Gaz de França e a franco-belga Suez, obriga a uma fusão dos dois grupos, antecipando o ataque da italiana ENEL.

Na essência e na forma, trata-se da realização, em pleno séc. XXI, da lógica mais primária da autarcia energética nacionalista saída da II Guerra, posta em causa no início dos anos 90.

Porque surge esta «barbárie nacionalista» no seio da União Europeia, qual a sua «lógica» e como contornar tamanha «pequenez» na leitura das preocupações – compreensíveis – de segurança energética da Europa e dos 25 Estados-membros?.

O efeito acumulado de que:

- o petróleo «veio para ficar» acima dos 55USD, triplicando o seu preço em dois anos, associado a um quadro instalado de «Choque de Civilizações», com o mundo islâmico fiel depositário de 80% das reservas mundiais;

- o gás natural é possível de também ser usado como arma política, como ressalta da recente redução de abastecimento de gás russo, dependendo a Europa em 50% da Rússia, Argélia e Noruega;

- a Europa tem o «destino traçado» de depender em ¾ do aprovisionamento externo de fontes de energia primária;

- todos os Estados-membros se confrontaram com dificuldades no incumprimento das quotas de emissão de CO2, no âmbito do compromisso «exemplar» assumido pela União perante Kyoto;

-  em consequência dos factos enunciados, o espectro de um sensível encarecimento da energia final, a castigar as empresas e as famílias.

Perante estes sinais a reacção, com excepção do Reino Unido, dos líderes dos Estados Membros tem sido um misto caricato de avestruz a empurrar com o papo?

Avestruz porque não percebem que criar campeões nacionais na energia, não resolve o problema essencial de essas empresas, por maiores que sejam, dependem de matérias-primas de países terceiros.

A «empurrar com o papo», porque não assumem perante a população que é incontornável pagar mais pelos serviços energéticos, independentemente dos fornecedores serem empresas «nacionais».

Dentro do quadro actual do paradigma tecnológico, a Europa é crescentemente, fatalmente, dependente de recursos externos – da «energia democrática» da Noruega, da energia «cristã ortodoxa» da Rússia e da energia «islâmica».

Perante isto, o único argumento da União é o de ser o segundo consumidor mundial, um grande actor da procura, que, por «esse lado», pode marcar cartas no jogo mundial da energia.

Pode também vir a assumir alguma relevância no desenvolvimento de novas soluções e tecnologias – hidrogénio, nuclear seguro e competitivo, renováveis, tecnologias de uso nacional, novas monitorizações de veículos de transporte, etc. – se souber reunir forças, juntar massa crítica, como fez para o projecto AIRBUS.

Mais, o ingénuo grito nacionalista dos líderes europeus, em torno das «suas» empresas energéticas, é feito à custa da criação de tensões entre os Estados Membros, com efeitos negativos, de dimensão imprevisível, nas frentes económica, social e política. Perante a chantagem russa, iraniana, argelina ou outra, os chefes europeus tentam-se «safar» em acordos bilaterais frágeis e fomentadores de desagregação do projecto e espírito da Europa Unida. A História comum dos países europeus, está cheia de maus exemplos e maus resultados de tais opções políticas?

Convém recordar que no contexto do Pós-Guerra e da Guerra Fria, dois dos três acordos base do embrião da Europa Unida, de meados dos anos 50, reportavam à energia: o Tratado EURATOM e o Acordo da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Foram estes acordos de cooperação e convergência de esforços que proporcionaram a «massa crítica» suficiente para a reconstrução, crescimento, desenvolvimento e estabilidade na Europa.

Também hoje se justifica «beber», em matéria energética, o espírito que animou aqueles acordos.

Assim, a Europa só pode mitigar a sua crescente vulnerabilidade energética se convergir na constituição do que poderíamos chamar plataforma logística de energia, apoiada na intensificação do programa de redes transeuropeias, que permitam constituir uma base de aprovisionamento e uma malha de inter-conexões entre os 25 Estados-membros.

Em paralelo, a Europa terá de fazer valer o todo do seu peso, nos planos diplomático e militar, de forma a criar compromissos e laços sólidos com as regiões e culturas que estão «sentadas» nas reservas energéticas fósseis de carvão, hidrocarbonetos e gás natural.

Nenhum estado «grande» da Europa tem qualquer hipótese de, por si, conquistar uma confortável autonomia e segurança energética:

– O Reino Unido, para mais insular, depois do maná pós-revolução industrial, do carvão nacional e do petróleo e gás do Mar do Norte, mergulhou numa profunda e incontornável dependência;

– A Itália, França e Espanha, completamente dependentes em energias fósseis, reforçam a sua dependência da Argélia e Líbia;

– A Polónia e a Alemanha emparceiram na rede da Rússia.

Apenas a Holanda vive uma situação de algum conforto, face às reservas confortáveis de gás natural.

Nos fornecedores fiáveis da Europa, só a Noruega pode sorrir. Por isso, também não integra os 25?

Neste quadro, é óbvio que não é inteligente reforçar os anéis intermédios da corrente se, na origem, aquele que a liga à âncora está corroído?

Os campeões nacionais de energia, ou agora o chamado patriotismo económico/ energético são enganos conjunturais, de líderes europeus, que não levantam os olhos do umbigo.

A continuarem assim – para além de efeitos negativos «colaterais» no projecto europeu – irão criar fissuras, tensões, dependências regionais de fornecedores instáveis, perda de «massa crítica» de know-how e esbanjamento de recursos e peso diplomático.

Se a França não aprendeu a lição, de quando o Governo de Vichy intrigava no palácio as tropas alemãs passavam por debaixo do Arco do Triunfo, que Bruxelas tente lembrar aos líderes europeus que, nas horas difíceis, só aos ratos é permitido o salve-se quem puder.

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