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20 de Dezembro de 2001 às 14:49

As raízes longínquas da globalização

Na ausência de organismos globais de regulação e controlo, a globalização cada vez mais está a ser fonte de enormes dificuldades para grande parte da Humanidade porque o seu processo está a avançar de forma desregrada.

Abel de Freitas, GEPE

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«O Mundo tornou-se Global» é, hoje, uma afirmação banalizada mas que por isso não deixa de traduzir mudanças substanciais e muito reais do Mundo.

A globalização entendida como o alargamento do mercado a quase todos os países do mundo e a esferas cada vez mais abrangentes da actividade humana tem raízes muito antigas, apesar de assumir características muito próprias e bastante marcantes da evolução da Humanidade, sobretudo desde a década de 90 do Século XX. Por tudo isto, a globalização não pode ser vista como um fenómeno inteiramente novo, sendo útil ir às suas raízes para identificar os marcos do processo.

O primeiro processo de globalização entronca nas repercussões das descobertas quinhentistas que, ao proporcionarem e consolidarem os contactos entre civilizações, que mutuamente se ignoravam, representaram um avanço importante das relações entre os povos do Mundo, independentemente da visão que se tenha sobre o tipo de relações desenvolvido.

O choque das descobertas foi tão grande como o seria hoje, por exemplo, se as explorações planetárias nos levassem a pôr em contacto as civilizações do planeta Terra com as de outras galáxias (se as houver).

O historiador Fernand Braudel desenvolveu o conceito de «economia mundo» para identificar o sistema económico internacional do tempo das descobertas.

Paul Valéry na sua obra de 1935 «regards sur le monde actuel» escreveu «le temps du monde fini commence», querendo com isto dizer que o fim da descolonização abria uma nova era para a Humanidade onde os territórios passavam a ser quase inteiramente partilhados entre estados soberanos «toda a terra habitável foi, nos nossos dias, reconhecida, partilhada entre Nações», o recenseamento dos recursos efectuado, as diferentes partes do mundo ligados entre si, criando-se uma solidariedade nova entre regiões e acontecimentos.

Nesta fase talvez seja mais apropriado falar-se de europeização que de globalização, uma vez que este processo das descobertas marcou um longo período de dominação do Mundo por essa mesma Europa, que durou até 1945.

A revolução industrial do Século XIX, os novos meios de comunicação (barcos a vapor, caminhos de ferro) e o crescimento económico ampliaram por sua vez a colonização e a implementação de relações entre os diferentes territórios do globo, tudo sob uma forma de dependência.

Em resposta a este tipo de desenvolvimento económico que multiplica os fluxos e as trocas, Marx e Engels contrapuseram, por seu lado, a criação da Internacional dos trabalhadores e o fim das fronteiras (Manifesto Comunista publicado em 1848).

Por outro lado, para Paul Krugman, economista americano de renome, a integração económica dos finais do Século XX era semelhante à do século XIX quando avaliada pelos fluxos das trocas de comércio mundial. Por exemplo, as importações americanas correspondiam a 11% do PIB no final da década de 90, contra 8% em 1880.

Outros exemplos podem ser dados para elucidar este fenómno da integração económica. Basta recordar o «crash» bolsista americano de 1929 e a onda de choque provocada à escala mundial.

As duas grandes guerras, embora centradas na Europa, repercutiram-se em todo o mundo e, sobretudo, se no pós 1945 analisarmos a clivagem Este –Oeste vemos a sua repercussão desenvolver-se a nível planetário, não havendo nenhum continente que escapasse a esta rivalidade soviético-americana.

Então em que se distingue a actual fase de Globalização das precedentes?

A actividade económica é hoje marcada por uma velocidade sem precedentes graças ao desenvolvimento tecnológico disponível. Vejamos as diferenças. O tempo de repercussão do «crash» de 1929 demorou três anos a fazer a volta ao mundo, enquanto o de 1987, com a mesma origem em Wall Street, demorou vinte e quatro horas a atingir todas as principais praças financeiras mundiais, o que significa o esmagamento do espaço e do tempo traduzindo-se em diferenças radicalmente novas do processo evolutivo.

As repercussões são também de novo teor. Os constrangimentos geográficos tornam-se pouco significativos e, em matéria de economia, o quadro nacional cede o terreno às redes mundiais de empresas.

Mas a globalização não pode ser entendida apenas como a abertura de fronteiras e de mercados. A globalização é um fenómeno muito mais abrangente: atinge as pessoas, as sociedades, os valores, os comportamentos, a cultura, graças aos efeitos dos Media, do turismo e das relações de negócios.

Oportunidade ou maldição?

O fenómeno da globalização tem gerado e vai continuar a gerar reações contrastadas.

Uns entendem a globalização como o vector mais seguro à escala mundial para espalhar a prosperidade e os valores da democracia. Para estes a globalização corresponde à idade de ouro em que a tecnologia não só resolverá as necessidades humanas como os conflitos.

Outros assimilam globalização à americanização do planeta, ou seja, a fonte de desigualdades. Para estes, globalização é o império das multinacionais, o mundo dos computadores onde deixa de haver privacidade e se gera a desumanização.

Parafraseando Heródoto, «o Egipto é um dom do Nilo», a globalização poderia/á ser também um dom para a Humanidade se se avançar com a receita utilizada no Nilo construindo barragens e diques para enfrentar e estancar o furor das cheias, fonte de desgraça dos agricultores egipcios até então e tornar as cheias benéficas uma vez dominadas.

Com a globalização dá-se o mesmo fenómeno: Como construir as barragens e os diques?!!. Na ausência de organismos globais de regulação e controlo, cada vez mais está a ser fonte de enormes dificuldades para grande parte da Humanidade porque o seu processo está a avançar de forma desregrada e pouco ajudam definições como a de Percy Barnevik, presidente da ABB, para quem a globalização é «a liberdade para cada sociedade do meu grupo de investir onde e quando quiser, de produzir o que quiser, de comprar e de vender o que quiser, tudo suportando o menor dos constrangimentos possíveis em razão da legislação social».

Abel de Freitas

Director do GEPE

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