Opinião
Actores principais no palco dos municípios
O peso específico da agenda dos líderes dos municípios é de tal monta, que não tem tradução equivalente na forma como os cidadãos avaliam o seu desempenho e se pronunciam nos momentos de decisão apropriados.
De quatro em quatro anos como agora, quando se aprestam as eleições para um novo mandato autárquico, há sempre um qualquer meio de comunicação social, no afã de projectar tópicos diferentes sobre o tema, que se lembra de abordar o dia a dia de um presidente de município.
Um dos mais recentes trabalhos publicados, em forma de foto-reportagem confinava de forma descuidada e como se isso fosse possível, a actividade do eleito em funções escolhido, entre as 10 e as 16 horas do dia aprazado?
É muito interessante constatar que o peso específico da agenda dos líderes dos municípios é de tal monta, que não tem tradução equivalente na forma como os cidadãos avaliam o respectivo desempenho e se pronunciam nos momentos de decisão apropriados.
De facto, se aos dirigentes é conferida isenção de horário porque se pressupõe que a sua actividade normal pode, com grande probabilidade, ser desenvolvida para além da carga temporal que obriga a Administração Pública, as múltiplas actividades dos municípios e em particular dos mais complexos, obrigam os respectivos titulares e em particular os presidentes, a um espírito de entrega e de disponibilidade, que poderá estar para além da vontade e expectativa de candidatos menos experientes mas, qual teia, os vai envolver sem retorno.
Para além das conhecidas diferenças culturais, ainda hoje faz muita espécie, a referência publicada anos atrás num jornal semanário sobre a agenda do primeiro ministro japonês, qualquer coisa do género: primeira reunião do dia às 7.04, reunião ou visita seguinte às 8.11 e assim por diante.
Talvez a política de proximidade não permita este rigor ao minuto, porventura os rituais a que o desempenho local se obrigou, sejam um outro óbice; é muito provável o dia de trabalho começar bem cedo, às vezes até pelas mais inesperadas razões e problemas que exigem adequada intervenção, mas dificilmente se pode agendar com rigor a hora de regresso ao lar.
Depois é uma longa maratona de reuniões dentro e fora do gabinete, interpelações pelos munícipes a cada esquina, despachar pilhas e pilhas intermináveis de documentos, ver esta ou aquela obra, estar presente activamente em cerimónias protocolares e inaugurações do teor mais diverso, provavelmente atender ou tentar reter alguma comunicação social.
Isto pressupõe uma agenda minimamente organizada, o que é muito difícil de conseguir face à interrupção avassaladora (mesmo com filtragem parcial) dos telefones, do exterior e interior dos municípios, através da rede clássica, agora várias vezes multiplicada pelo recurso incontrolado aos telemóveis.
Telefonemas para esclarecer, para informar, solicitar ou seduzir e um mar de pressões? à medida que o líder se instala na função e se estabelecem contactos, é uma nova etapa que se inicia e que decorre em paralelo com o inevitável percurso político-partidário, primeiro a nível local (uma relação que é necessário alimentar em permanência), depois no distrito, região e por aí fora, que os palcos são muitos, diversos e quase sempre irrecusáveis.
Convites para almoços e jantares mais ou menos formais e das mais diversas proveniências, inquirições, reclamações mais ou menos exaltadas e insinuações, uma catrefa de mails diários a juntar a toda a outra documentação a despachar e as intermináveis reuniões dos Executivos e das Assembleias Municipais, tudo isto tende a entupir as agendas dos presidentes de Câmara, sendo a ingovernabilidade maior se não tiverem a sagacidade e sorte de constituir gabinetes de apoio eficazes.
Se o dia começa cedo, porque o tempo nunca chega, as noitadas tornam-se inevitáveis, dificilmente a alimentação será regrada e a horas mas, se gostar de viajar, qualquer município tem acesso ou é membro de organizações internacionais, pelo que, além de tomar contacto com outras realidades é possível de quando em vez intervalar no ritmo a que se impôs, que não abstrair-se das preocupações subjacentes ao funcionamento quotidiano da autarquia.
Mas quem são os nossos autarcas para além do que se observa naturalmente, se têm família e qual a sua importância na forma como assumem o cargo, quem são os seus amigos e colaboradores mais próximos, quais os seus prazeres de vida, interesses, que tempo reservam para si e para quê? Quem é o quê na sua face oculta ou menos visível, para se perceber melhor as personalidades com quem se lida e nos governam: sensíveis, maquiavélicos ou simplesmente humanos?
E que tipo de liderança se propõem exercer, que ascendência e modos de trabalho estabelecem com os seus vereadores, presidentes de Juntas de Freguesia e dirigentes municipais?
Também passa por aqui a gestão diária do tempo e de agenda de cada um, sendo que neste contexto os líderes inspiradores ganham alguma vantagem, na medida da dinâmica que conseguem imprimir às suas equipas.
Em tempo de campanha, aumentam «as pulsações» das agendas, espartilhadas entre apoios, influências, traições, dinheiro, partidos e sociedades locais.
Com agendas onde todos os dias são úteis, de trabalho, a competição pelo poder permite encontrar prazer onde quase tudo aparenta sacrifício; a possibilidade de ver obra com relativa facilidade, o poder de mando e de ser reconhecido, a adrenalina e algum conteúdo afrodisíaco, está tudo lá e como se vê recompensa.
Subsiste, é claro, um pequeno problema – pretende-se que os poderes públicos prossigam o interesse público, mas este só é especialmente entusiasmante e vinculativo quando resolve problemas individuais, os quais por regra são incompatíveis com aquele?
Por isso não deixa de se revestir de alguma cândida ironia, ver de quando em vez, neste ou naquele media, reportagem sobre alguns petizes seleccionados por um qualquer município, para acompanharem a actividade diária ou semanal do respectivo presidente – é que a sua simples presença como figurantes, adultera, amaciando a agenda normal do titular da função.
Será pedagogia adequada, o recurso a um modelo onde uma agenda ritualizada substitui a realidade, e o bem que sabe ter poder, gerir sobre um caos controlado, é ocultado perante a evidência de tudo se fazer pelo bem da comunidade local?