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29 de Setembro de 2005 às 14:32

Democracia sem cidadãos nem independentes

O retrato não pode ser mais demolidor: o português alucina no trânsito, vocifera nos transportes públicos, tenta passar à frente nas filas para ser atendido, facilmente se exalta se não é correspondido, cospe como atira lixo para o chão, despreza os vizin

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O retrato não pode ser mais demolidor: o português alucina no trânsito, vocifera nos transportes públicos, tenta passar à frente nas filas para ser atendido, facilmente se exalta se não é correspondido, cospe como atira lixo para o chão, despreza os vizinhos, desespera nos centros de saúde, nas salas de cinema entretém-se a pontapear a cadeira do espectador da frente, vocifera contra o compadrio mas não vive sem a cunha, elogia o parceiro enquanto se prepara para o farpear, sente-se atingido pelos impostos mas estende a nota na mão ou no envelope porque é assim que as coisas funcionam, entra nas agremiações e nos partidos políticos tecendo loas ao colectivo e preparando a teia para si e, porque a lista de predicados nunca mais acaba, ainda arranja tempo para apontar a falta de cidadania? dos outros.

 

Os mais conciliatórios sentir-se-ão tentados a rebater esta caracterização comportamental, sumária e depressiva, observando que noutros países a coisa também já não é o que era.

Poucos se terão dado conta que nos últimos tempos do chanceler Köhl na Alemanha, este chegou a sugerir a realização de uma conferência internacional para debater o crescente desequilíbrio entre direitos e deveres nas sociedades contemporâneas. É de admitir que ele não estivesse especialmente preocupado com Portugal, donde, se a questão se coloca num dos "motores europeus", o que pensar do que se passa entre nós?

O problema é se os conceitos de cidadão e de cidadania são meramente figurativos, teóricos, ou se a palete de obrigações e direitos existe, está claramente ordenada e produz efeitos.

A construção e funcionamento de um Estado e da sua estrutura político-administrativa de suporte, não se esgota numa carta constitucional de liberdades, direitos e garantias, nem se equilibra se cada cidadão não tiver presente os limites da sua liberdade perante o outro e as obrigações perante o colectivo.

A impotência em resolver esta questão criou uma oportunidade para a emergência de conceitos tecnocráticos, como o de cidadão convertido em simples cliente ou utente dos serviços públicos. À pala desta realidade, vieram novos especialistas, as tecnologias, outras técnicas, métodos e procedimentos, mas as melhorias quando surgem, são sempre limitadas enquanto as deficiências são rapidamente imputadas à crónica e indiscutida falta de meios humanos e financeiros ou, se necessário, ao ambiente que envolve tudo o que é prestação de serviço público.

A Administração Pública é burocrata e funcional?

E a generalidade das pessoas (nós) comporta-se como cidadãos de facto, perante essa Administração?

Racionalizando um pouco mais: quando se é atendido numa empresa privada que já foi pública, quando se entra numa loja, café ou restaurante, o serviço bom e eficaz é regra ou a excepção?

Para uns a solução está na Educação, para outros na sensibilização pública, mas vejamos: como se comportam hoje no espaço público os jovens de há vinte anos atrás, alvos das primeiras campanhas de sensibilização? De forma substancialmente diferente?

Atente-se agora no que um accionista espera da sua empresa: lucros e a possibilidade de influir na respectiva administração; subjacente está a liberdade de optar, o risco e as regras a que se obriga.

E o cidadão, accionista obrigatório do Estado, o que espera, o que é que obtém, a que regras está sujeito e como se comporta perante elas?

A ironia é que esta perspectiva quase de capitalismo de Estado, cumpre o anátema que exorcizou terceiros.

Mas talvez valha a pena repensar a questão a partir da seguinte abordagem: é condição básica de cidadania responsável explicar sempre, com clareza, as funções e limites do Estado, os programas, e o dinheiro que lhe dão corpo, como são aplicados e quais os resultados obtidos.

Trabalho ciclópico? Tão só perceber e dar primazia à obrigação do Estado de informar, de explicar com clareza opções, regras e resultados. E para que isto aconteça, talvez o mais difícil seja fazer entender o que é a informação de serviço público, ou seja, exemplo entre muitos, o oposto daquele presidente de município que escreveu ser contrário à existência de boletins municipais, mas que editava o seu na ausência de, segundo ele, imprensa regional de qualidade nessa terra, ou daquele outro, que pretendia afastar a associação entre o boletim da sua autarquia e a propaganda de campanha, porque o último a sair teria sido editado há dois meses atrás?

A hipocrisia política, definitivamente, não casa com um Estado de cidadãos, o que impressiona não é a existência de boletins ou de outros meios de informação legítimos, mas sim a continuada incapacidade visceral de muitos políticos em perceber que toda a sua actuação tem de ser publicamente explicada, que se o fizerem, beneficiam natural e indirectamente disso e que a tentação e deslize, quase sempre presentes para a auto-promoção, raramente resultam e traduzem a negação ou impossibilidade do sistema.

Um Estado de cidadãos pressupõe, pelo menos, opções claras, livre escolha, acompanhamento público baseado no conhecimento, partilha do processo de decisão em determinadas matérias, direitos e obrigações das partes lapidarmente definidos e assumidos.

Será este um objectivo intangível?

Aproximado é o grau de perplexidade gerado em torno dos independentes na vida e governação democrática, onde, se parece haver unanimidade em torno do papel central dos partidos políticos, verifica-se a procura crescente, quase desesperada, em atrair aqueles que de alguma forma se destacam mas não fazem parte dessas estruturas, para dar alento de credibilidade onde ela não podia faltar.

Nestas eleições autárquicas, como em actos eleitorais anteriores, existe uma história oculta, perturbadora, que muito poucos conhecem e é interdito trazer a público, dos inúmeros convites e recusas a pessoas mais ou menos independentes, para encabeçarem ou incorporarem as listas a sufrágio, sintoma do disfuncionamento do sistema político.

O "negócio" é, contudo, desequilibrado – as supostas mais-valias de cada independente conquistado, estão sujeitas à configuração da estrutura em que vai agir; a partir daí, ao coabitar, deixa-se normalizar pelo meio envolvente ou entra em ruptura para salvaguardar a sua identidade.

De facto, o independente nesta vida de interdependências, ou está totalmente de fora ou não o é, quando se consagrou a possibilidade de candidaturas independentes às autarquias locais, quase tudo o que então apareceu, eram os afastados ou derrotados de anteriores pugnas pelo poder nas organizações locais dos partidos – abstraindo da profunda luta de titãs em curso, com consequências imprevisíveis, a diferença na actualidade, reside no mediatismo dos novos excluídos e na falta de tempo para sarar as feridas abertas.

A sociedade democrática devia ser suficientemente atractiva para gerar inclusão e o recurso aos independentes ser a excepção; face às circunstâncias, os que o deixam de ser desvalorizam a sua condição, suscitam dúvidas de apreciação – os que são forçados a sê-lo, a partir para ganhar essa condição, esses colhem a simpatia e identificação dos que se sentem injustiçados e ainda beneficiam da incapacidade ou impossibilidade dos que ficam, em diferenciar princípios e atributos.

No actual estado de coisas, criar como foi aventado, órgãos "independentes" para fiscalizar ou zelar pelo cumprimento dos programas eleitorais sufragados para as autarquias locais, pese a melhor das intenções, é uma impossibilidade prática e a ter lugar, um passo mais no descrédito da vida pública.

Cruamente, Vasco Pulido Valente acaba de escrever: "O Estado-Providência transformou o cidadão vulgar num quase absoluto irresponsável e os dirigentes da democracia fazem carreira a mentir-lhe".

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