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06 de Dezembro de 2002 às 17:23

A política orçamental: muito barulho para (quase) nada

Em fase de abrandamento conjuntural, só por razões excepcionais o défice orçamental é cumprido.

Teodora Cardoso, Economista

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A política orçamental de 2002 está a caminhar a passos rápidos para o que desde cedo pareceu o seu desenlace mais provável, embora não o mais desejável.

Este teria consistido numa política que reconhecesse a existência de ciclos económicos e a sua interacção com o orçamento, em particular com a evolução das receitas (e também de algumas despesas, v.g. o subsídio de desemprego ou, mais utilmente, o investimento público).

A primeira preocupação de tal política teria consistido em estabelecer um cenário prudente de evolução da economia e das receitas públicas a médio prazo e, com base nele, fixar limites de crescimento das despesas a um prazo de 4/5 anos e fazê-los aprovar pelo Parlamento.

Aí teríamos assistido a uma excelente oportunidade de pôr à prova a responsabilidade orçamental de todos os partidos e a sua capacidade para resistir à tentação de, depois dos apertos, voltar a gastar, sem outro cuidado que não sejam as próximas eleições, esquecendo as condições económicas para sustentar esse nível de gastos.

Relativamente a 2002, este exercício permitiria rapidamente concluir que não podiam esperar-se milagres. Em meados do ano já era claro que a conjuntura internacional estava de novo a agravar-se e que, internamente, a economia estava também a ressentir-se da falta de um verdadeiro modelo de convergência real com a UE. De facto, deixando de poder contar com o aumento indefinido das transferências europeias, Portugal ficou confrontado com a necessidade de atrair investimento, nacional e externo, para projectos competitivos a nível internacional. Chegados a esse ponto, ficaram claras as insuficiências da maior das empresas face ao mercado único europeu e à globalização, a exigência de projectos de investimento estruturantes, a ineficácia dos sistemas educativo, de formação profissional, judicial, fiscal, etc.

O necessário tempo de maturação das reformas estruturais e a deterioração de uma administração pública cada vez mais cara, mas com desempenho muito desigual, com as áreas de maior peso socio-profissional a ficarem claramente para trás em matéria de “value for money”, acarretariam inevitavelmente um custo muito elevado do abrandamento conjuntural, tornando óbvias simultaneamente a perda de competitividade da economia e a pressão sobre ela exercida pela rigidez das despesas públicas.

Adoptar nestas circunstâncias uma política orçamental restritiva clássica, assente em primeiro lugar no aumento de impostos, não poderia senão agravar ainda mais a perda de confiança das famílias e das empresas, deprimindo o consumo e o investimento e, com eles, a actividade económica e as receitas públicas.

Face a este círculo vicioso, asseverar que o défice de 2,8% seria cumprido a qualquer custo conduzia a lançar mão de medidas que, a prazo, não só não remedeiam a situação, como a agravam. Entre estas contam-se decisões pontuais, como a relativa ao “último” perdão fiscal, mas sobretudo o enraizar da noção de que os problemas orçamentais continuam a resolver-se por meio de expedientes, como a venda de património ou outras medidas sem sequência (ou com prováveis sequências negativas, como o estranho caso da dívida de Angola, cujas implicações no défice orçamental são difíceis de perceber).

A confiança na política orçamental não pode apoiar-se neste tipo de percepção, menos ainda quando a ela se juntam o facto bem real da subida de impostos, a continuada falta de transparência de muitos aspectos da gestão do orçamento, a inexistência de progressos na qualidade da gestão pública (que não resultam de mudar pessoas ou fundir organismos, mas de definir regras e incentivos eficazes) e a própria ausência de condições políticas (mesmo dentro da maioria parlamentar) para o controlo estável das despesas.

O único factor de confiança, em que se jogaram todos os trunfos e em que vários comentadores parecem, um tanto ingenuamente, apostar é o cumprimento da palavra dada, parecendo que a reputação do governo – ou mais provavelmente apenas da Ministra das Finanças – se faz ou desfaz em função de cumprir ou não os 2,8% de défice. Ora acontece que, em fase de abrandamento conjuntural, só por razões excepcionais o défice orçamental é cumprido. Mais importante ainda: nessas circunstâncias nem sequer é desejável que o seja, sobretudo se tal implicar subidas de impostos ou corte de despesas com impacto na actividade económica.

É essa, aliás, a lógica do Pacto de Estabilidade, procurando que os países apresentem excedentes nos períodos de mais forte crescimento para poderem acomodar défices nas fases recessivas. Assim, a maior parte dos países da UE apresentam deterioração da sua situação orçamental no final de 2002 relativamente às perspectivas existentes no início do ano.

Nos EUA, o défice agora previsto ascende a 3,2% do PIB contra 0,7% iniciais. É verdade que a gestão do PEC, na parte inicial do ano, ajudou a confundir o problema, o que levou aos epítetos menos corteses de que acabou por ser alvo e finalmente a uma revisão de procedimentos que vai na direcção certa.

Quanto aos 2,8%, já há muito sabemos que as estatísticas – que são indispensáveis à boa gestão, tanto macro como microeconómica – podem, quando mal usadas, contribuir para obscurecer, mais do que para esclarecer as questões. É tempo de aprendermos a ler melhor as estatísticas das finanças públicas, a exigir mais da sua qualidade e da política que deviam retratar.

Teodora Cardoso

teodora.cardoso@clix.pt

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