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25 de Novembro de 2003 às 10:02

A Política e as Estatísticas

Não só nenhum sistema estatístico se autofinancia, como aquele que pode inquestionavelmente considerar-se o melhor existente no mundo - o sistema americano - se caracteriza precisamente pelo fornecimento gratuito, indiscriminado e atempado de toda o infor

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Na semana passada, o INE anunciou ter encomendado a peritos canadianos um relatório sobre o Sistema Estatístico Nacional, que se destina a substituir a auditoria anunciada pelo governo aquando da posse da nova direcção do Instituto. Só pode elogiar-se o bom senso desta alternativa e esperar que ela frutifique.

Portugal tem um claro conflito com os números. Usa-os pouco e – o que é muito pior – usa-os mal. Se quisermos um exemplo, dificilmente poderemos encontrar melhor do que a saga do défice orçamental, da respectiva auditoria e subsequentes atribulações. As raízes do problema são várias, mas pouco têm a ver com o INE. As principais dizem respeito:

- ao modo como se tomam decisões políticas entre nós;

- à falta de independência e de capacidade de gestão autónoma da administração pública;

- ao completo desprezo dos empresários e da opinião pública em geral pelas estatísticas.

Para encontrar a solução será, por isso, necessário mais do que consultar os peritos canadianos, não obstante o respeito que merecem. Na verdade, o principal problema não é técnico nem financeiro. Para concluir – como eles terão feito – que a independência da(s) entidade(s) produtora(s) de estatísticas não se consegue pelo autofinanciamento, basta olhar em volta. Não só nenhum sistema estatístico se autofinancia, como aquele que pode inquestionavelmente considerar-se o melhor existente no mundo – o sistema americano – se caracteriza precisamente pelo fornecimento gratuito, indiscriminado e atempado de toda o informação estatística (tanto em bruto como trabalhada) a quem tiver interesse em usá-la.

Quanto ao INE – e não obstante a melhoria muito significativa registada desde há alguns anos no acesso “online” – para muitos dados ainda continua a ser preferível recorrer a fontes internacionais. Não só são às vezes mais baratas, como têm a vantagem de fornecer igualmente dados para outros países, o que é cada vez mais relevante. O que o INE tem a fazer neste domínio, além de produzir com qualidade, a tempo e gratuitamente todos os dados que o Eurostat divulga, é publicar informação mais detalhada e específica para Portugal, além de cumprir rigorosamente e mesmo antecipar os requisitos do Eurostat, em especial sobre matérias de particular interesse para a análise da política económica e para a gestão das empresas.

Aqui põe-se uma questão clássica, de há muito discutida, mas nunca verdadeiramente resolvida: deve o INE cingir-se a divulgar estatísticas, ou deve fazer análise e eventualmente transformar-se num instituto de conjuntura? Não creio que a questão de fundo tenha sequer discussão: é indispensável que um instituto de estatística digno desse nome faça e publique análises, desde as relativas às metodologias estatísticas, à divulgação e pedagogia dos seus dados, até às análises micro e macroeconómicas, sociais, demográficas, etc. No entanto, para que este trabalho tenha algum mérito e não leve simplesmente a criar um porta voz do governo do momento sob a aparência da análise técnica, há que garantir a sua independência. Não sendo isso conseguido, as análises rapidamente se transformarão em periódicas litanias que não valem o que custam.

Caímos, assim, nas questões básicas da independência e do modo como se tomam decisões políticas entre nós. Temos à vista, no Banco de Portugal, o melhor exemplo quanto à forma de resolver estes problemas. Já há muitos anos que ninguém discute a qualidade da informação que publica e que todos damos por adquirida a sua divulgação regular. O trabalho sobre estatísticas monetárias e financeiras e de balança de pagamentos começou nos anos sessenta e atingiu a maioridade com a primeira grande reforma dessas estatísticas em 1976. Desde aí, elas foram sendo adaptadas sempre que necessário para ter em conta as mudanças institucionais e os padrões internacionais, sem nunca perderem a continuidade e permitindo, por isso, fundamentar as análises e a tomada de decisões políticas.

Para isto acontecer, não foi necessária a adesão à UE ou a declaração de independência do banco central. Foi sim essencial que os responsáveis pelo Banco tivessem percebido que essa era a base indispensável para a definição da política monetária e cambial. O INE tem agora – como, em geral, teve no passado – uma equipa dirigente capaz de resolver os seus problemas técnicos e procurou o apoio de uma entidade estrangeira de impecável reputação. Resta esperar que o governo finalmente compreenda que instrumentalizar as estatísticas é o pior serviço que se pode prestar ao país e que, quando algo não correr bem, audite os seus próprios métodos de tomada de decisões, em vez de demitir a direcção do INE.

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