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Benjamim Formigo 08 de Setembro de 2006 às 13:59

A globalização da amnésia

O enigma da amnésia clínica está evidentemente fora do âmbito destas linhas, contudo o publico mais atento tem podido constatar um outro fenómeno comportamental: a amnésia dos políticos.

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Pode qualificar-se como uma síndrome de desmemoriação adquirida ou não (SDAN), acentuada pela importância do lugar, e que pode ou não contaminar secretárias, assessores e outras figuras que rodeiam o político.

A SDAN está pouco estudada e é diagnosticada pelos jornalistas obrigados a recordarem-se dos acontecimentos, pelo menos dos mais recentes. Decorre daqui que a sua origem é da responsabilidade dos «média» e portanto não existe.

O fenómeno não é recente. Todavia foi a partir do caso Watergate que a SDAN se veio a acentuar. Ressurgiu no caso Irangate e nunca mais parou de se multiplicar espalhar pelo Mundo.

Nos inquéritos que se seguiram ao caso da venda de armas pelos Estados Unidos ao Irão com a finalidade de comprar outras armas destinadas aos «contras» da Nicarágua, a SDAN conseguiu exasperar alguns congressistas que numa audiência ouviram 147 vezes da boca do mesmo inquirido a expressão «não me recordo».

O inevitável aconteceu nesse inquérito. Apesar das evidências do Relatório Tower, só o tenente-coronel Oliver North e um ou outro funcionário menor sofreram consequências. Ronald Reagan, também «não se lembrava» de ter dado qualquer autorização ou assinado um «finding» (que nunca apareceu), como «não se recordavam» os seus colaboradores mais próximos de que uma tal operação de aquisição de fundos para armar os «contras» e o próprio Irão, contornando as proibições do Congresso, tivesse ocorrido.

Outro dos esquecimentos de Washington foi a tentativa de utilização de aeródromos portugueses para o trânsito e trasfega de armas de avios israelitas para aeronaves da Southern Air Transport, operada pela CIA. Esta companhia fez de resto múltiplas escalas em Portugal, concretamente no Aeroporto da Portela. Operações de que ninguém «se lembrava»; muito especialmente «ninguém se lembrou» de dar conhecimento ao Governo português. Por uma vez houve quem se recordava do pedido insistente feito a Portugal para uma dessas operações - de grande envergadura e difícil de esconder das autoridades. O então Primeiro Ministro Aníbal Cavaco Silva lembrava-se, como se lembrava de ter recusado essa autorização, e seguramente foi com o seu consentimento o seu MNE aceitou responder sobre o assunto a dois dos jornalistas que investigavam esses voos: eu e o José Júdice, confirmando que o pedido fora apresentado e recusado apesar das pressões.

Nos últimos meses têm-se multiplicado as noticias sobre voos da CIA com escalas em países europeus, um dos quais Portugal. Voos onde eram transportados, ao arrepio do Direito, detidos do Afeganistão e sabe-se lá de onde mais, para Guantanamo e sabe-se lá para onde mais.

O cidadão comum não conhece as companhias, algumas cridas à última hora, que servem de capa à CIA. Seria ingenuidade acreditar na ignorância dos serviços de informações dos diversos países. Mesmo entre aliados a confiança é relativa. Ou os serviços de informação se «esqueceram» de manter actualizada a lista ou se «esqueceram» de avisar os seus Governos. Também é de admitir que pelas suas ocupações alguns governantes se «tenham esquecido» de ler os relatórios periódicos dos serviços, ou na sua azáfama se «tenham esquecido» do que leram.

Em qualquer dos casos os «esquecimentos» são graves. Se invocarmos ignorância então ainda é mais grave pois houve uma falha dos serviços o que não permitiu aos Executivos gerirem esses «esquecimentos».

O Parlamento Europeu é que parece resistir à contaminação pela SDAN e continua a pretender esclarecimentos e apurar as responsabilidades dos Governos europeus.

A SDAN espalhou-se escapando alguns que tímida e tardiamente admitiram voos e escalas, insistindo de boa fé, «desconhecimento» de prisioneiros.

Ana Gomes, deputada europeia, membro do Partido Socialista português afirmava no início da semana ter recebido uma carta de Freitas do Amaral admitindo que esses trânsitos se haviam verificado em território português. Freitas do Amaral escreveu a carta enquanto ministro. Alguém, vítima de SDAN, se deve ter esquecido e a carta só agora chegou às mãos da deputada, quando o MNE já mudou.

O mais curioso aconteceu quarta-feira, quando a carta de Freitas do Amaral já era do conhecimento público. O actual ministro foi ao Parlamento. Alguém «se esqueceu» de o alertar para esses voos estarem na agenda da oposição. Luis Amado foi apanhado pela SDAN. Quem «se esqueceu» de dar a Luís Amado cópia da carta de Freitas do Amaral e da documentação em que o anterior ministro fundamentara a missiva a Ana Gomes?

Como é evidente esta globalização da amnésia não pode ser tolerada pelos eleitores. Em causa não está, em primeira linha, a prestação de Luís Amado no Parlamento. No caso português esses voos até terão ocorrido nos Governos anteriores. Grave é a globalizada aceitação passiva de que os governantes «não se recordem» ou, pior ainda «não tenham tido conhecimento».

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