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A falta de higiene democrática não mata mas deixa ferida

Os dois casos de corrupção que varrem o Portugal e a Espanha dos políticos, o caso Freeport em Portugal e o caso Gürtel em Espanha, têm muitas diferenças. Mas, depois de tantas peripécias, têm também uma curiosa semelhança. Entre os...

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Os dois casos de corrupção que varrem o Portugal e a Espanha dos políticos, o caso Freeport em Portugal e o caso Gürtel em Espanha, têm muitas diferenças. Mas, depois de tantas peripécias, têm também uma curiosa semelhança. Entre os principais protagonistas judiciais, temos magistrados e procuradores (ou fiscais, no caso espanhol) que desempenharam cargos políticos relevantes em governos anteriores, que participaram em campanhas partidárias ou que aceitaram participar em tertúlias de natureza partidária. Temos a confusão instalada entre a política e a justiça. Vivemos hoje uma situação de descrédito das instituições em Portugal e em Espanha, da justiça, em geral, e do poder judicial, em particular. Ter magistrados que pulam entre cargos políticos e cargos judiciais ao sabor de interesses pessoais e partidários não mata, mas deixa uma ferida profunda na democracia.

Sou da opinião que não se deveria autorizar, em nenhuma circunstância, que um magistrado possa pular entre a política e a justiça ao sabor das suas conveniências pessoais, por muito que as ambições de cada um sejam muito respeitáveis. Os cargos políticos são tão dignos como os cargos judiciais, mas em nome de uma elementar higiene democrática, e no respeito por uma separação de poderes que configura um verdadeiro Estado de Direito, esses cargos não são, nem podem ser, compatíveis. Os magistrados que entendam ter participação política nos poderes executivo e legislativo não podem regressar ao poder judicial. O regime jurídico que se aplica aos militares deveria, com mais razão, aplicar-se aos magistrados judiciais e do Ministério Público. Na verdade, surpreende (ou não) a preocupação em imunizar as Forças Armadas de confusões mal explicadas com os partidos políticos, mas não as magistraturas.

Todas as regras estritas provocam erros. Uma regra que proíbe o regresso à magistratura activa de quem decidiu desempenhar cargos políticos necessariamente prejudicará os bons magistrados que tenham ocupado cargos políticos, ou mesmo dissuadirá magistrados qualificados de aceitarem cargos políticos que eventualmente poderiam desempenhar de forma excelente. Mas parece-me preferível ter que suportar esses custos, que manter um regime cheio de excepções para serem usadas e abusadas. Neste momento de crise da justiça, de generalizada falta de credibilidade da classe política, e de sério esgotamento do sistema partidário, repetidamente confirmados nos estudos de opinião, só uma regra estrita que imponha total transparência, e elimine qualquer possibilidade de repetir-se o que temos visto estas semanas, poderá ajudar a reestabelecer a credibilidade e honorabilidade do poder judicial.

Todos os governos, o actual e os anteriores, usaram e abusaram de nomeações políticas de magistrados judiciais e do Ministério Público. Infelizmente, a nossa Assembleia da República está mais preocupada com a quantidade de sal no pão, que exige ser regulada com urgência em nome da higiene pública, mas não encontra tempo para legislar adequadamente de forma a impedir o espectáculo vexatório a que o poder judicial tem sido submetido (com a participação activa de alguns magistrados e procuradores, felizmente uma minoria bem querida nas altas esferas dos partidos políticos).

Restam pois os respectivos conselhos, o Conselho Superior da Magistratura, o Conselho Superior do Ministério Público, e o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Esperemos que estes conselhos reconheçam a seu tempo a situação de verdadeira crise de credibilidade em que se encontram as magistraturas e tomem as medidas necessárias, dentro da suas competências. A conversa habitual da falta de meios perde-se quando estes conselhos sistematicamente deixam escapar a oportunidade de pôr ordem na casa e credibilizar de forma substantiva o poder judicial. O primeiro sinal seria, desde já, indeferir todas as comissões de serviço dos magistrados e procuradores fora da estrita esfera da justiça. Todas são todas, sem excepções.

Evidentemente que as reformas na justiça deviam ter passado por aqui, mas não passaram. Os nossos governantes andam demasiado ocupados para terem tempo para as mais elementares regras de higiene democrática. A qualidade da democracia não é uma prioridade e pode esperar. Até quando?

Professor da University of Illinois College of Law
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