Opinião
[96.] Anúncios controversos (II)
Ao estar no espaço público colectivo, o anúncio da casa Girbaud imitando a Última Ceia de Leonardo da Vinci tinha necessariamente de provocar controvérsia. O que significa que o objectivo foi exactamente esse.
É recorrente o uso de imagens religiosas pela publicidade para surpreender e, eventualmente, chocar. Na semana passada referi anúncios do Amoreiras Shopping Center e da casa Yves Saint-Laurent. Ainda em França, um anúncio do Volkswagen Golf de 1988 usou a mesma paródia da última Ceia de da Vinci: lá está a mesa desta vez com a toalha branca do fresco de Milão, lá está mesma distribuição dos «apóstolos» três a três, lá está a simetria divina em torno da figura de «Jesus», lá está amesma ausência de bancos e cadeiras, colocando os figurantes num momento de suspensão. Ao contrário do anúncio da casa de moda Girbaud, agora proibida, o anúncio do Golf pretendia recorrer ao humor fácil e, confundindo o que na religião cristã é morte e nascimento, tinha como legenda «Meus amigos, rejubilai pois um novo Golf nasceu.»
Um anúncio da marca de roupa Kookai em 2001 recorria a outro arquétipo da memória religiosa e artística ocidental, a Pietá de Miguel Ângelo na catedral de S. Pedro, no Vaticano. Em vez de Maria segurando Jesus morto, a fotografia apresentava uma mulher segurando um homem desmaiado ou morto: ele identificado como o rapaz das pizzas, ela como a cliente. A nudez do cenário é semelhante à do anúncio da casa Girbaud, valorizando a referência à escultura de Miguel Ângelo - e as roupas Kookai dos modelos.
O cosmopolitismo e intenção artística das paródias dos anúncios Girbaud e Kookai, já próprios do novo século, contrastam com o provincianismo antiquado da paródia do VW Golf.
As provocações publicitárias actuais têm outro antecedente nas campanhas da Benetton realizadas por Oliviero Toscani, em torno de «temas fracturantes» na sociedade. Um dos «outdoors» da Benetton representava um beijo na boca entre um padre e uma freira. Um outro mostrava uma Pietá no mundo real contemporâneo: a família do activista da SIDA David Kirby é acompanhado pela família nos seus últimos momentos.
O que estas campanhas têm em comum é utilizarem referências da religião cristã. Com o objectivo de surpreender e chocar, acabam por ofender uma parte daqueles a quem se destinam. A reacção a estes anúncios é por vezes superior a outro tipo de referências desagradáveis para a religião por causa do que está na origem dos anúncios: uma actividade comercial. Oliviero Toscani referia que as suas campanhas provocavam celeuma por tratarem de temas da actualidade e lamentava que a publicidade enganadora não provocasse a mesma polémica.
Tinha razão, mas o binómio causas reais versus publicidade enganadora servia os seus intentos e escondia a verdadeira questão ética: a Benetton, tal como agora a Girbaud, usam temas importantes na e para a vida das pessoas com o objectivo de consolidar imagens de marcas e para vender roupas. Colocam os «temas fracturantes» nos anúncios não para promover o seu debate social, mas para servir o seu comércio.
Será que a proibição do anúncio da casa Girbaud foi um exagero? Estamos num terreno movediço: o da liberdade de expressão, que deve ser sagrada. Mas estamos também perante uma falta de ética da marca e dos anunciantes. O anúncio pode ser arte, mas não deixa de ser anúncio, é publicidade; o objectivo é vender, ganhar dinheiro.