Opinião
[95.] Anúncios controversos
A proibição de um anúncio da casa de moda francesa Marithé + François Girbaud pelo tribunal de Paris trouxe de novo ao espaço público o debate sobre os limites da publicidade.
O reclame mostra uma recriação fotográfica da representação estética da Última Ceia de Cristo, de Leonardo da Vinci. Também a municipalidade de Milão, cidade onde se pode admirar a obra do artista italiano, proibiu os «outdoors» com o anúncio da casa Girbaud. A fotografia é muito elaborada.
Os treze figurantes foram situados num espaço monocromático. A mesa, que no fresco de da Vinci já é essencial para a organização do espaço e distribuição das personagens, parece estar no ar. E, sem cadeiras nem bancos, os modelos estão, também eles, como que suspensos, pois da Vinci criou um momento de suspensão a partir da descrição dos Evangelhos sobre o momento em que Cristo anuncia que um dos presentes o trairá. Na foto não há qualquer adereço para além do tampo da mesa de escritório, de uns recipientes em cima da mesa e de uma mala, que faz a vez do saco com as moedas de Judas. Se a composição de da Vinci é magnífica, esta também é, pois respeita a fonte. Ao simplificar a imagem retirando da foto tudo o que seria em excesso, valorizou-se a composição e depurou-se-la. Como objecto estético o anúncio é magnífico.
A estética fotográfica lembra as obras em vídeo do artista norte-americano Bill Viola. Uma das obras de Viola apresentadas em Londres, há dois anos na Tate Modern – que aqui reproduzo –, remetia para uma representação de Cristo no Sepulcro. No anúncio da casa Girbaud, a referência intertextual é complexa: não estamos apenas perante uma imagem que imita outra, mas perante uma recriação – alterada – de uma imagem fortíssima da história da arte ocidental e uma representação de um momento fulcral da narrativa fundadora da principal religião no Ocidente. O anúncio coloca mulheres onde no quadro – quer dizer, nos Evangelhos – se referem homens. No lugar de Cristo está uma mulher; em vez de 11 dos apóstolos estão mulheres; e apenas no lugar de S. João está um homem. Ele é o único cuja posição não respeita a que da Vinci atribuiu ao santo representado. Os publicitários quiseram representá-lo homem e quiseram-no representar de costas. Há, assim, uma referência intertextual sobreposta à imitação do fresco do génio italiano: o anúncio refere-se também ao romance «O Código da Vinci», de Dan Brown, no qual se especula ficcionalmente sobre a figura de S. João na pintura de da Vinci, tomando-a por uma mulher, que o livro diz ser Maria Madalena, «companheira» de Jesus. Ao colocar o único homem no lugar que o romance Vinci, a foto filia-se na controvérsia gerada pelo livro. Tal como o romance, também o anúncio reforça retrospectiva e ficcionalmente o papel social da mulher. E o papel na moda. O anúncio foi colocado em «outdoors»: ocupou o espaço público.
Os anunciantes deveriam saber que colocar mensagens controversas no interior de revistas, que são observadas em espaços privados, por um pessoa só, é muito diferente de colocá-las em grandes «outdoors», onde a sua observação é partilhada por muitas pessoas. Neste caso, há pessoas que se sentem ofendidas, sentem pudor, pelo simples facto de se saberem a partilhar uma imagem que a si mesmas ofende. Daí que protestem. Aconteceu em Lisboa, quando o Amoreiras Shopping Center fez um «outdoor» natalício com «S. José» e a «Virgem Maria» adorando uma alface. E aconteceu quando Yves Saint-Laurent encheu «outdoors» da Grã-Bretanha com um anúncio, que nas revistas não motivou protestos, mostrando uma modelo muito branca, nua, como se fosse um mármore.