Opinião
[471.] Optimus - "Bem-vindos à aldeia global"
A aldeia global é uma metáfora que, aqui, funciona como mundo global chegando à aldeia. Todavia, a simpatia e o respeito pelo mundo aldeão que vamos perdendo são verdadeiros e prolongam-lhe a vida e o nosso amor por valores a que realmente nos sentimos muito ligados.
O anúncio televisivo da Optimus "Bem-vindos à aldeia global" ilustra o lugar que o país rural e as suas tradições têm no Portugal contemporâneo, retomando um gosto e um carinho com uma filiação antiga na literatura e nas artes visuais.
Se fosse apenas cinema, poderíamos dizer que o pequeno filme se encaixa na tradição neo-realista, mostrando actores não-profissionais nos seus trabalhos e divertimentos no seu próprio ambiente; não faltam as paisagens bucólicas duns Trás-os-Montes ainda intocados pelas importações da industrialização, da globalização da sociedade de consumo e da cultura mediática irradiada de Lisboa, Hollywood, Londres e Nova Iorque. A "autenticidade", que é sempre relativa, pois tudo é autêntico quando é aceite a sua entrada no hábito sócio-cultural, tem aqui um valor substantivo que a ideologia subjacente ao anúncio quis captar: à parte o quadro do leão numa parede, a lembrar influências remotas da experiência africana de Portugal, não se vêem elementos visuais que distinguiam a paisagem vegetal e humana do que poderia ser antes da reviravolta que o país começou a dar desde o início dos anos ‘60.
A escolha de Trás-os-Montes indica não só uma variante saudável à insistência dos publicitários com o Alentejo, fazendo deste modo coincidir a originalidade da escolha com uma "autenticidade" que, por ser menos conhecida, se torna sinónimo de mais "autêntica", mas também revela o interesse do cinema português pela região: "O Acto da Primavera", de Manoel Oliveira (1962), "Falamos de Rio de Onor", de António Campos (1974) e "Trás-os-Montes", de Jaime Reis e Margarida Cordeiro (1976) marcam para sempre o cinema antropológico português e estabelecem o ruralismo nordestino como tema de eleição.
O ruralismo é um elemento estruturante das representações literárias e visuais portuguesas. Enquanto os escritores realistas europeus se concentravam, a partir de meados do século XIX, nos temas urbanos, na cidade como protagonista, nas consequências da vida urbana para a psicologia e a economia das personagens, em Portugal a literatura realista prolongou a temática rural de forma inusitada. O mesmo se vê nos primórdios da fotografia nacional, na pintura realista e naturalista e no cinema, mudo e sonoro, com uma quantidade significativa de filmes em ambientes rurais. O Estado Novo, transformando uma "aurea mediocritas" em filosofia do regime, prolongou-a para fins políticos, mas pôde fazê-lo por ser uma ideologia bem arreigada no todo nacional: os portugueses vêem na vida rural um ideal de vida mais "pura", "simples", "verdadeira" e "sem a hipocrisia" da vida urbana. Para isso contribui a beleza paisagística de variedade ímpar em tão pequeno território e, pela lentidão da introdução do "progresso" capitalista nos campos, a sobrevivência de arquitectura, de lazeres e trabalhos manuais, cuja estética, resultando de matérias-primas locais, junta mais beleza e alcança uma ecologia notável.
Assim explico a escolha duma aldeia de Montalegre numa paisagem maravilhosa no anúncio da Optimus. Mas o ruralismo é pano de fundo de uma globalização que também a Optimus quer: o maestro (Victorino de Almeida) vai da cidade dirigir os aldeãos; a canção "All Together Now", dos Beatles, vem do fundo do mundo pop global; e os habitantes esforçam-se por cantar, não na sua língua, mas no inglês do mundo. Não é uma fábrica, não é uma auto-estrada, não é uma empresa de alta tecnologia, mas é ainda o mundo global que mostra a sua superioridade ao idealizado mundo rural, através da cultura pop e importada. Não podia deixar de ser assim: o anúncio é, como um romance de Camilo ou "A Rosa do Adro", uma ficção, usando neste caso o mundo rural já em parte ficcional (a velhota só teceu o linho para o filme) na promoção da disseminação dos serviços de uma empresa hiper-moderna. "Bem-vindos à aldeia global", diz o slogan. A aldeia global é uma metáfora que, aqui, funciona como mundo global chegando à aldeia. Todavia, a simpatia e o respeito pelo mundo aldeão que vamos perdendo são verdadeiros e prolongam-lhe a vida e o nosso amor por valores a que realmente nos sentimos muito ligados.
ect@netcabo.pt
Se fosse apenas cinema, poderíamos dizer que o pequeno filme se encaixa na tradição neo-realista, mostrando actores não-profissionais nos seus trabalhos e divertimentos no seu próprio ambiente; não faltam as paisagens bucólicas duns Trás-os-Montes ainda intocados pelas importações da industrialização, da globalização da sociedade de consumo e da cultura mediática irradiada de Lisboa, Hollywood, Londres e Nova Iorque. A "autenticidade", que é sempre relativa, pois tudo é autêntico quando é aceite a sua entrada no hábito sócio-cultural, tem aqui um valor substantivo que a ideologia subjacente ao anúncio quis captar: à parte o quadro do leão numa parede, a lembrar influências remotas da experiência africana de Portugal, não se vêem elementos visuais que distinguiam a paisagem vegetal e humana do que poderia ser antes da reviravolta que o país começou a dar desde o início dos anos ‘60.
O ruralismo é um elemento estruturante das representações literárias e visuais portuguesas. Enquanto os escritores realistas europeus se concentravam, a partir de meados do século XIX, nos temas urbanos, na cidade como protagonista, nas consequências da vida urbana para a psicologia e a economia das personagens, em Portugal a literatura realista prolongou a temática rural de forma inusitada. O mesmo se vê nos primórdios da fotografia nacional, na pintura realista e naturalista e no cinema, mudo e sonoro, com uma quantidade significativa de filmes em ambientes rurais. O Estado Novo, transformando uma "aurea mediocritas" em filosofia do regime, prolongou-a para fins políticos, mas pôde fazê-lo por ser uma ideologia bem arreigada no todo nacional: os portugueses vêem na vida rural um ideal de vida mais "pura", "simples", "verdadeira" e "sem a hipocrisia" da vida urbana. Para isso contribui a beleza paisagística de variedade ímpar em tão pequeno território e, pela lentidão da introdução do "progresso" capitalista nos campos, a sobrevivência de arquitectura, de lazeres e trabalhos manuais, cuja estética, resultando de matérias-primas locais, junta mais beleza e alcança uma ecologia notável.
Assim explico a escolha duma aldeia de Montalegre numa paisagem maravilhosa no anúncio da Optimus. Mas o ruralismo é pano de fundo de uma globalização que também a Optimus quer: o maestro (Victorino de Almeida) vai da cidade dirigir os aldeãos; a canção "All Together Now", dos Beatles, vem do fundo do mundo pop global; e os habitantes esforçam-se por cantar, não na sua língua, mas no inglês do mundo. Não é uma fábrica, não é uma auto-estrada, não é uma empresa de alta tecnologia, mas é ainda o mundo global que mostra a sua superioridade ao idealizado mundo rural, através da cultura pop e importada. Não podia deixar de ser assim: o anúncio é, como um romance de Camilo ou "A Rosa do Adro", uma ficção, usando neste caso o mundo rural já em parte ficcional (a velhota só teceu o linho para o filme) na promoção da disseminação dos serviços de uma empresa hiper-moderna. "Bem-vindos à aldeia global", diz o slogan. A aldeia global é uma metáfora que, aqui, funciona como mundo global chegando à aldeia. Todavia, a simpatia e o respeito pelo mundo aldeão que vamos perdendo são verdadeiros e prolongam-lhe a vida e o nosso amor por valores a que realmente nos sentimos muito ligados.
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