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[373.] Elle

As revistas femininas de moda exemplificam a comercialização das nossas vidas e a transformação da publicidade e das marcas em conteúdo editorial.

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Na revista Elle de Setembro, mais de 80% das páginas editoriais incluem referências a marcas de todo o tipo, numa confusão enorme, que não dá saúde ao jornalismo, entre informação e promoção.

Esta edição da Elle serve aqui como simples exemplo. A mesma análise, aplicada a outras revistas femininas ou masculinas, dedicadas à moda ou a automóveis ou jogos de computador, daria resultados semelhantes.

A edição de Setembro da Elle tem 196 páginas, das quais 55 são anúncios de uma ou mais páginas. Restam 141 páginas de carácter editorial, da responsabilidade da direcção jornalística. Dessas, mais de 80% contêm referências a marcas e serviços. A maioria refere-se a marcas de roupa, acessórios, produtos de maquilhagem. Há também um artigo, assinado por uma jornalista, que se confunde com a promoção de um produto de saúde e beleza Lâncome. Há destaques de filmes, de livros e discos da moda, como em tantas outras publicações. Uma entrevista a um médico inclui a promoção da instituição a que está vinculado (Instituto da Inteligência). Um artigo sobre um hotel em Florença não inclui uma única referência à cidade, além do nome.

Entre as páginas que considerei sem referências comerciais (menos de 20% das páginas editoriais) estão textos sobre actores de filmes comerciais em estreia ou sobre esses mesmos filmes. Há um artigo sem referências comerciais sobre o problema existencial de "comprar ou não comprar, eis a questão", mas é ilustrado com modelos com carteiras de Emporio Armani - "sem dúvida uma boa aposta", diz a legenda.

A relação entre as páginas publicitárias e as editoriais é profunda. Por exemplo, na revista há apenas um anúncio de marca de roupa infantil (Pepe Jeans). Nas duas páginas publicitando editorialmente roupas e acessórios infantis há 21 fotos com legendas de marcas e preços, sendo a marca mais mostrada precisamente a Pepe Jeans, com seis fotos, incluindo as duas únicas em que se vêem crianças. Nenhum das outras marcas ultrapassa a metade dessas seis presenças. No final da publicação, há uma página que consagra a filosofia editorial: é uma lista das marcas referidas nas suas páginas, com moradas, telefones ou emails. Mesmo a página do horóscopo remete para os contactos da "horóscopa" Maria Helena.

A presença avassaladora das marcas nas publicações de carácter jornalístico, incluindo as de referência, corresponde à crescente colocação de produtos nos conteúdos programáticos televisivos, mas é ainda mais profunda. O objectivo dos materiais jornalísticos numa revista feminina é, em primeiro lugar, dar espaço às marcas. Em vez de anúncios publicitários - ou além deles -, os artigos parecem feitos para referir produtos, sem que haja, em qualquer deles, a mínima noção de contraditório. Nenhum artigo diz "mas", nenhum se interroga sobre os produtos. As marcas precisam das revistas e as revistas aparentam só existir se favorecerem as marcas. As publicações deste género, ao disfarçarem catálogos comerciais com conteúdos de tipo editorial, credibilizam a publicidade e o "product placement". O jornalismo e a publicidade confundem-se, à semelhança da felicidade com o consumo.

A vida comercializa-se. A magia da mercadoria ocupa todo o espaço visível e de vida. A felicidade e o bem-estar passam por usar produtos de beleza, vestir as marcas, ir aos locais anunciados. Ser feliz é comprar e usar. "Comprar ou não comprar?" Comprar, claro, não há "questão". As "10 regras" do artigo da Elle são todas para comprar. A questão é outra: a felicidade está no consumo. Ou, em versão minimalista: há um grão de felicidade na compra da revista para sonhar com os olhos.



ect@netcabo.pt





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